Já parou para pensar em como você era na adolescência? Como era seu cabelo, seu corpo, os medos e as ansiedades? Eu odiava as sardas, usava um óculos rosa horrível de grau já bem alto e tinha um conga azul surrado, porque estava sempre batendo corrida com alguém. A adolescência é uma das fases mais difíceis de se viver. Tudo muda e muda muito rápido. O corpo ganha formas, a voz se transforma, os pelos surgem, as espinhas inundam em nosso rosto trazendo vergonha e desespero.
Para as meninas é também o momento da primeira menstruação que, geralmente, chega sem muito entendimento, impedindo a livre execução das atividades físicas. "Viramos mocinhas" é o que mais se ouve nesta fase. E, é neste período de vida que (re)descobrimos a nossa sexualidade. Tudo muito confuso e solitário. Não sabemos bem quem somos, nem quem queremos ser. Adolescência é transição. É um foguete que rasga o céu. É a experiência do caos, os pais que o digam.
Foi um péssimo dia é a obra mis recente da escritora, vencedora do Jabuti entre muitos outros prêmios e ex-patrona da Feira do Livro de Caxias, Natalia Borges Polesso. O livro será lançado neste sábado (14), durante um bate-papo que vai abordar exatamente esse período, entre a saída da infância e a adolescência.
Natália nasceu em 1981, em Bento Gonçalves, por acaso, como ela mesma conta, uma década over, colorida, de abertura política e fim da ditadura. Não, a internet ainda não existia, nem WhatsApp ou qualquer outra rede social. As amizades se davam na escola. As brincadeiras aconteciam na rua e todos morríamos de medo de nos engasgar e morrer com a bala soft, lembram? Foi um péssimo dia é um livro de autoficção e traz como personagem central Natalia, uma garotinha ansiosa, muito ansiosa, em que a mãe tentava curar a tal ansiedade com chinelada ou benzedura.
Na chamada de vídeo que fizemos para conversar sobre o livro, além das adolescentes que fomos se encontrarem, falamos sobre como surgiu a ideia e das duas lembranças que motivaram a sua escrita, uma envolvendo a mãe e outra, o pai. Por isso, o livro tem uma parte dedicada para cada um de modo separado. Natalia conta que o livro já meio que existia, porque sempre pensou, em algum momento, poder escrever para um público mais juvenil. Daí o editor da Dublinense, Gustavo Faraon, a procurou querendo lançar algo parecido com uma novela, que fosse mais curto, algo como o Vamos comprar um poeta, do escritor português Afonso Cruz, que também já passou aqui pela terrinha, em maio deste ano.
Recheado de referências aos anos 80 é impossível não nos identificarmos. Natalia, a personagem, conta como era o dia do flúor na escola, lembra de ter de tomar sal amargo porque fazia bem para o sangue, fala sobre o desejo de ter um walkman e poder ouvir as fitas cassetes cheinhas de músicas e relembra, ainda, o barulho das mobiletes, uma febre que invadiu as ruas naqueles anos. A narrativa, amarrada à cultura de massa e à memória, alterna entre a adolescente e a adulta, no modo de refletir sobre os acontecimentos.
Natalia, a escritora, conta que desejava que o texto funcionasse como o conto Restos de Carnaval, de Clarice Lispector. No conto, assim como no livro, a personagem ora menina ora adulta, relembra de fatos que a marcaram profundamente, justamente naquele período em que ainda não temos autonomia para tomar decisões próprias.
É um texto que fala também sobre medos, sobre a inaptidão dos adultos no cuidado com os filhos, sobre uma mãe sobrecarregada e um pai que tentava fazer as coisas darem certo, sem muito sucesso. Fala dos lugares em que a família morou, sobre amizades tóxicas na infância, o primeiro amor e o primeiro beijo. É a história de uma menina atravessada pelas atitudes dos adultos tentando dar conta daquilo que nem conseguia pôr em palavras. Confessa que tem um certo receio de como os pais vão reagir ao texto:
— É o primeiro livro que sinto isso — afirma.
Foi um péssimo dia é uma narrativa deliciosa que trata da descoberta da sexualidade de modo muito natural. Natalia, a escritora, conta que desejava muito escrever sobre isso de uma forma menos dolorida, com mais aceitação e naturalidade.
— Eu queria poder falar do amor e da descoberta de si sem tanto sofrimento.
Foi durante nossa conversa que Natalia também me contou, que se reconhece como não-binária. O não-binarismo, diferente do binarismo que acredita na existência de apenas dois sexos baseados na diferença biológica, abre espaço para se pensar as sexualidades em suas múltiplas subjetividades.
— Há muitas formas de se ser quem se é — diz sorrindo. — Somos plurais.
A Natalia, personagem, agora escritora, cresceu. Ela escreve, traduz e está fazendo seu segundo pós-doutorado. Sua pesquisa é sobre o conceito de antropoceno na literatura brasileira contemporânea e a mudança causada na Terra pela ação humana.
Programe-se
- O quê: Bate-papo "Todo mundo já teve um péssimo dia: ficção e memória", com a escritora Natalia Borges Polesso. A mediação é da escritora Geneviève Faé. Logo após ela autografa suas obras.
- Quando: sábado (14), às 17h.
- Onde: Galeria de Arte Gerd Bornheim (Casa da Cultura).