Pelo menos nove grupos musicais e uma polenta de mais de 70 quilos irão transformar a Câmara Municipal de Caxias do Sul no palco de um grande filó na sessão do próximo dia 31. Pelo menos assim promete o músico e radialista Ladir Brandalise, que nesta data irá receber dos vereadores o título de cidadão caxiense, reconhecendo uma trajetória que tem no esforço pela preservação da língua Talian o sentido maior.
A questão é que Ladir e outros abnegados, que ao longo de décadas se esforçam para manter viva a língua que unifica dialetos falados nas regiões de colonização italiana, já não parecem tão utópicos em sua missão - que continua árdua. Desde 2014, quando o talian foi reconhecido como Língua de Referência Cultural Brasileira pelo Instituto de Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan), sendo alçado à qualidade de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, percebe-se um movimento de valorização e resgate, pontuado por iniciativas especialmente no âmbito da cultura e da educação.
- Acho que vivemos um momento espetacular de resgate e salvaguarda, desde que se passou a reconhecer o talian como uma língua com gramática própria, com professores habilitados ao ensino e com muitos projetos sendo apresentados e aprovados, dentro desta temática de valorização. Durante a pandemia, por exemplo, fizemos uma série de filós formativos, com recursos da Lei Aldir Blanc, que foram muito emocionantes e serviram de impulso para iniciativas futuras - destaca Ladir Brandalise, que é natural de São Jorge, na Serra.
Há 11 anos à frente do grupo musical Girotondo, um entre tantos que animam bailes, filós e festas que celebram a cultura da imigração italiana, Brandalise recorda da própria infância, nos anos 1970, quando falar o talian era razão para sofrer o que hoje conhecemos por bullying, e que por isso era também motivo de vergonha:
- Eu caminhava quatro quilômetros para chegar à escola, na cidade, e era aquele aluno colono visto como alguém rude, com pouca instrução. Tinha vergonha de falar o dialeto vêneto, como a gente chamava o talian na época. Crianças como eu adoravam cantar músicas como "La Bella Violeta", "Quel Massolin Di Fiori", mas tinha que esconder essa identidade na escola.
Prestes a embarcar com parte do Girotondo para uma turnê de duas semanas na Itália, com apresentações marcadas nas sete províncias da região do Vêneto, é com orgulho que Ladir vive a expectativa pela homenagem no Legislativo, proposta pelo vereador Alberto Meneguzzi (PSB):
- É uma emoção muito grande receber este reconhecimento, mas sei que é uma trajetória muito bonita de dedicação ao talian e amor pela cultura imigrante.
ENSINO DA LÍNGUA CRESCE
Para entender por onde passa esse momento de tomada de fôlego do talian, é fundamental conhecer o trabalho da Cucagna Scola de Talian, fruto de um projeto capitaneado pelo professor João Wianey Tonus, também incansável defensor do ensino da língua dos antepassados. Fruto de uma parceria com a Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná), trata-se do primeiro curso de talian com alcance de extensão acadêmica, gratuito e virtual. Em Caxias, os alunos assistem às aulas virtuais juntos, tendo mais uma hora de encontro presencial para conversar e tirar dúvidas.
- Temos hoje 27 núcleos de ensino do talian, sendo 14 deles através de projeto aprovado pela Lei de Incentivo à Cultura do Estado, e outros treze independentes, em que os professores atuam como voluntários. Em Caxias temos quase 50 alunos inscritos, uma procura muito boa. A maioria destes alunos são professores, guias turísticos, profissionais da área de marketing, e também pessoas que buscam o curso pelo lado afetivo - comenta Tonus.
Ainda com vagas disponíveis após a primeira semana, os encontros ocorrem na sala de teatro Miseri Coloni (localizada na Casa das Etnias) sede para ensaios e apresentações do grupo homônimo _ que desde os anos 1980 divulga o talian e a cultura italiana com humor. Tonus, um dos fundadores do grupo, concorda com o amigo Ladir Brandalise ao apontar o momento atual como muito favorável para a perpetuação do talian:
- A perspectiva de morte (a língua talian) sempre vai existir, mas hoje ela está viva e forte. Está voltando a ser falada nas casas das famílias, a ser ensinada nas escolas, a aparecer em projetos culturais. A gente está vendo esse conhecimento finalmente avançando.
Em junho, a editora Unicentro, vinculada à universidade homônima, lançou o "Dissionàrio Talian Brasilian". A edição impressa conta com mais de 700 páginas, mas o dicionário também está disponível gratuitamente online, com ferramentas de busca por palavras. Pode ser acessado em link disponível no site da editora.
MÚSICAS EM TALIAN NAS ESCOLAS
Em Monte Belo do Sul, um concurso cultural criado pela prefeitura em parceria com o Centro de Tradições Italianas incentivou a composição de letras em talian por estudantes do município ao longo deste ano. Treze alunos participaram e tiveram suas letras musicadas, arranjadas e gravadas em áudio e vídeo por conjuntos musicais de Monte Belo, e a premiação ocorreu no último dia 11, junto com a festa de apresentação dos trajes da corte da Festa de Abertura da Vindima.
Viabilizado pelo programa Procultura, do governo do Estado, Produzindo Música em Talian na Escola' nasceu da preocupação com a renovação do interesse pela língua, segundo conta o secretário de Turismo e Cultura Álvaro Manzoni:
- Quando a gente fala em preservação do talian, ainda há quem ache que é só coisa de velho. A iniciativa partiu dessa necessidade de revitalizar, de fazer com que os jovens e as crianças se interessem por manter viva a língua que suas famílias ainda falam em casa. É claro que não houve uma adesão total por parte dos estudantes, mas houve um interesse muito significativo.
Além da comunidade escolar, o projeto envolveu boa parte dos artistas e agentes culturais do município, que se envolveram na seleção das canções, na correção e nos arranjos para ritmos característicos, como a tarantela, a valsa e a marcha.
- Além do concurso em si, o projeto gera uma cartilha com as letras, suas traduções, cifras e partituras. É um registro da música contemporânea pós-imigração italiana - celebra Manzoni.
Embora tanto meninas quanto meninos tenham participado, as três primeiras colocações do concurso ficaram com meninas: Gisele Flamia, autora de "San Francesco del Monte", ficou em primeiro lugar, recebendo prêmio de R$ 1 mil; Heloísa Albanese ficou em segundo com "Valor del Monte (R$ 800) e Isabela Dinon ficou em terceiro com "Bel Monte, Monte Bel" (R$ 600).
REENCONTRO ALEGRE COM AS ORIGENS
"Mamonas Assassinas da colônia" é como se autointitulam os bem-humorados membros d'Os Colonos Zo Scarpon, banda que em 2023 comemora 20 anos de atuação. Tanto no repertório quanto na parte cênica das apresentações, os caxienses misturam o talian ao chamado "sotacón", que a vocalista Luiza Pezzi bem compara a um equivalente italiano do portunhol, como chamamos a mistura do português com o espanhol.
Presença garantida nas principais festas da região, como a Festa da Uva de Caxias ou a Noite Italiana de Antônio Prado, o Zo Scarpon "pisa fundo" (sim, é um trocadilho com o nome da banda) quando é para mostrar que a alegria faz parte do figurino do imigrante italiano, e que é bonito ser colono, sem medo de errar um erre" aqui e ali.
- Nós crescemos vendo nossos pais falarem em talian entre si, mas com a gente eles falavam em português, porque tinham vergonha que a gente fosse malhado na escola por causa do dialeto e do sotaque - conta o baixista Luiz Antônio Rossa.
Para Luiza, mais jovem e também a última a entrar na banda, além de divertir, o Zo Scarpon cumpre um papel de proporcionar reencontros das pessoas com as suas raízes, sendo ela mesmo um exemplo disso:
- Quando conheci o projeto, como fã, veio de encontro a uma busca por saber qual era a minha raiz familiar. Acho que a nossa grande sacada, enquanto projeto folclórico, é a de fomentar esse amor pela cultura italiana, pela língua que é tão bonita, que seria um segundo idioma muito natural para nós, mas que as pessoas não se alimentam mais disso como poderiam.
Preservar a tradição, no entanto, não significa virar as costas para as mudanças culturais na sociedade. Os integrantes comentam que, embora o repertório continue o mesmo, muitas piadas foram sendo tiradas do show por deixarem de fazer sentido.
- Tem brincadeiras que não cabem mais, como algumas que envolvem questões de gênero, sexualidade, raça. As pessoas querem se divertir, mas não pode ser em cima de alguém que vá se sentir desconfortável. Nós somos uma banda que tem mulheres, que tem negro, e valorizamos muito essa diversidade - aponta Luiza Pezzi.