Anualmente o mesmo desafio se impõe no Brasil. Em todo o país, novembro é o mês da Consciência Negra cuja data simbólica é lembrada no dia 20 e instituída oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Aqui em Caxias do Sul comemora-se ainda o Dia da Umbanda (14 de novembro), o Dia Municipal de Combate ao Racismo (15 de novembro), e a Semana Municipal da Capoeira, em torno do dia 20. É inegável que o conjunto dessas ações têm força e potência para sensibilizar e conscientizar a comunidade quanto a importância do assunto.
A Secretaria Municipal da Cultura de Caxias organizou as atividades dentro da proposta de uma Temporada Cultural, cuja programação pode ser conferida na página 7. O desafio, no entanto, revelam as pessoas entrevistadas nessa reportagem, é romper os limites de novembro, ampliando para o ano todo a percepção do significado dos negros na formação do Brasil pelas mais diversas regiões, corrigindo deturpações históricas e atribuindo a essa população o valor apagado e as vozes silenciadas ao longo de séculos.
O tema é delicado, encontra ainda resistência em parte da população — não apenas em Caxias — o que, na visão dos entrevistados, corrobora com a necessidade de conscientizar a sociedade quanto a essa realidade. Infelizmente, apesar de os relatos a seguir estarem separados por décadas, revelam como a luta precisa ser diária e não apenas anual. A caxiense Amália Regina da Silva Jardim, 81 anos, busca na memória uma cena que jamais apagou da retina. Na época, ela tinha por volta de 11 anos e trabalhava para uma família também caxiense.
— Quando eles iam pra casa da praia me levavam junto pra fazer o serviço. Só que à noite eles gostavam de sair pra ir na casa de uns amigos e jogar carta. E tu acredita que eles me deixavam fora de casa, na varanda, sentadinha ali até eles voltarem bem tarde da noite? Nem dentro de casa eles me deixavam... Sabe que depois disso eu peguei um trauma por praia? Nunca mais quis saber — revela Amália, cingindo a testa e apagando o lindo sorriso que até então fazia sua face brilhar.
Por sua vez, o caxiense Jorge de Jesus, 51, produtor cultural e cineasta, conhecido como DJ Mono, explica que foi também na infância a primeira vez em que ele tomou consciência de atitudes racistas e excludentes contra ele.
— A gente jogava bola todos os dias ali na frente de casa, sempre os mesmos amigos, só que aí, um dia um deles estava de aniversário e convidou toda turma, menos eu. Pra jogar bola, eles me chamavam de Pelezinho, e eu nem dava bola pra esse apelido, mas aí, na hora do aniversário eu não servia — conta Jesus, que se deparou com outra atitude racista mais incisiva por volta dos seus 20 e poucos anos, quando processou uma casa noturna de Caxias, vencendo a ação na Justiça.
Assim que relatei esse fato vivenciado pelo Jesus, a criadora de moda Jaqueline Silva, 36, de bate-pronto já disparou:
— Eu sei bem o que é isso, não ser convidada pra estar com os amigos. E numa cidade como Caxias, fica difícil fazer amigos, aguentar a pressão do emprego e até namorar, porque qual é a mãe de um homem branco que aceita uma negra como nora?
E esse é só um dos desafios que se impõe diante da agenda em prol da conscientização dessa que é mais do que uma causa é um propósito para tornar a sociedade mais igualitária, apenas de dversa e plural.
Do futebol para o cinema: o PPP do Jorge
O Jorge de Jesus é um cara emotivo e um baita contador de histórias. Enquanto que a professora Cláudia Fin só encontrou a trilha para amplificar sua potencialidade como mulher negra na universidade, percebendo como a educação pode ser revolucionária (no melhor sentido) por promover mudanças fundamentais na sociedade, o Jorge, por sua vez, aprendeu a se virar nos 30 na cara e na coragem — só para usar um jargão popular — desde pequeno.
De pasteleiro, passando a vendedor com carteira assinada e, atualmente, como produtor cultural, cineasta e DJ, tudo o que ele idealiza precisa contemplar a sigla PPP. Nesse caso, não se trata de nenhuma parceria público-privada e, sim, Plano, Projeto e Prática. Sua obra mais recente é o documentário Meu Chão – Clubes Negros do Rio Grande do Sul, com direção compartilhada com Geslline Giovana Braga. Por esse filme, Jesus recebeu o prêmio de Melhor Direção no 2º Festival Negro em Ação. Confira na página 7 os locais onde o documentário será exibido durante o mês da Consciência Negra.
É por meio da arte que Jesus enfrenta o preconceito e ocupa espaços que antes eram negligenciados. Sua inspiração veio de casa, ao ver a atuação do irmão Eugenio de Jesus, mais conhecido como Eucajus.
— Eu via ele fazendo os cartazes das produções que ele fazia e dizia: “É isso que eu quero”. Nessa época eu já vendia ingressos pra ele e colocava os cartazes na minha escola e meus colegas ficavam curiosos me olhando — recorda Jesus.
O cineasta não sabe, mas durante a entrevista com a professora Cláudia ela revelou ter muita admiração dele.
— O Jorge sempre foi um exemplo pra mim, porque sempre “meteu a cara” e foi abrindo portas por onde passava.
Lições de sala de aula para o mundo
Entre as áreas de convergências de pensamento a favor do fortalecimento da consciência e valorização dos negros estão a educação e a cultura. A respeito da educação o bom exemplo vem da professora Cláudia Fin, 46, nascida em Bento Gonçalves, formada em História com mestrado em Letras e Cultura, cuja dissertação aborda a literatura marginal Desvelando a periferia: ficção e história em Capão Pecado, de Ferréz. Atualmente ela é vice-diretora da Escola Municipal Giuseppe Garibaldi, em Caxias do Sul.
Antes de tratar do que se pode fazer — e do que ela já tem feito em sala de aula — Cláudia contextualiza a situação:
— Pensar a invenção do conceito de raça e por extensão o negro implica em olhar para uma teia enredada de complexidades. A representação moderna de raça coloca o sujeito racial negro como um objeto incompleto, imperfeito, selvagem, violento que necessita ser punido, vigiado e tutelado durante toda a sua existência.
E mesmo sem conhecer a Dona Amália, a professora explica porque aquela menina – e hoje uma senhora— , carrega o trauma da praia por toda a sua vida.
— Nessa perspectiva, compreender, apreender e problematizar a sociedade brasileira e outras sociedades, em diferentes tempos, rompendo com o apagamento epistêmico (conhecimento ou saber como um tipo de experiência) afro-brasileiro, periférico, marginal e indígena me parece uma dinâmica eficiente na luta antirracista — defende Cláudia.
Uma das abordagens, que segundo ela são vetores de potência, é abordar a história do Brasil trazendo à luz da cena personagens negros que são apagados ou, de certa forma, deixados de lado nos livros didáticos tradicionais. Antes de iniciar o conteúdo, a professora explica que faz um diagnóstico na turma, porque, diz ela, nem sempre os negros se reconhecem ou se valorizam.
— Enquanto professora, leitora e pesquisadora da história, sobretudo da história do Brasil, eu enxergo riquíssimas fontes de saberes que oferecem aos educadores reflexões que se sobrepõem ao eurocentrismo e problematizam as estruturas políticas, econômicas e sociais do nosso país — avalia.
Em sua prática pedagógica em sala de aula e em funções administrativas como direção e coordenação, Cláudia entende que é preciso conduzir uma “educação antirracista”. Quem quiser mergulhar nesse universo pode ler as obras a seguir, todas recomendadas pela professora: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, Racismo brasileiro, uma história da formação do País, de Ynaê Lopes dos Santos, O filho da Gabriela, de Lima Barreto, Contos de Yõnu, de Raquel Almeida e Metamorfoses, de Geni Guimarães.
Ancestralidade e homenagem
Como buscar inspiração em histórias de vida através de uma exposição fotográfica? Essa foi a pulsão que moveu a criadora de moda caxiense Jaqueline da Silva, 36. Ela é proprietária da grife NêgaNegô, cujo nome é inspirado em uma das mais antigas tribos africanas. Por causa da grife em que ela comercializa roupas que conectam as mulheres à sua origem na África, ela queria ver isso representado por imagens. Foi aí que procurou a fotógrafa Tatieli Sperry.
— Eu tinha um desejo de fazer algo voltado para as mulheres mais velhas e surgiu a oportunidade de fazer um projeto para o Novembro Negro, do ano passado. Sugeri que fosse algo voltado para a ancestralidade. Porque, em nossa sociedade, o racismo estrutural torna invisível a mulher negra — explica Jaqueline.
Para ela, a atual geração está mais fortalecida para lutar a fim de trazer a mulher negra para um espaço de visibilidade e protagonismo e a exposição também vem servindo para isso. Foram escolhidas como modelos mulheres negras entre 57 e 97 anos.
— Pra mim, que sou de uma geração mais nova, isso está mudando mais. Mas para as mulheres mais velhas, na época delas foi mais difícil. Por isso, buscar a ancestralidade por meio dessas mulheres é uma forma de homenagear as que vieram antes de mim. E nada mais bonito e significativo que tornar elas rainhas africanas.
A exposição Raízes está à mostra no Arquivo Histórico Municipal até dia 30 deste mês. Sobre a repercussão, a fotógrafa Tatieli Sperry disse que não sabia muito bem como mensurar. Mas, logo em seguida, a Dona Amália, que é tia de Jaqueline e é uma das retratadas na mostra fotográfica, interrompeu e disse:
— Sabe que as pessoas já me pararam onde eu moro, ali no bairro Marechal Floriano, e me elogiaram, porque viram minhas fotos?
— Ah, é? – surpreendeu-se Tatieli.
— Sim, acontece muito isso e eu fico muito feliz – respondeu Amália.
A partir dessa primeira experiência, Jaqueline e Tatieli já planejam a próxima mostra, dessa vez retratando homens negros. Porém, apesar de valorizarem as ações nos meses de novembro, elas entendem que essas atividades devem ocorrer o ano todo, para que de fato esses temas em torno da valorização dos negros faça parte do cotidiano e não apenas de um momento do ano.
PROGRAME-SE
Durante o mês de novembro diversas atividades estão ocorrendo por Caxias do Sul a fim de contemplar esse tempo de reflexão acerca do movimento que procura valorizar e fortalecer o negro. Há desde exposições e mostras fotográficas, passando por shows, manifestações artísticas, exibição de filmes e sessões de debate. Confira a seguir quais atrações o público pode acompanhar durante este mês.
- Na Praça Dante
A partir do dia 16, a Unidade de Arte e Cultura Popular da Secretaria Municipal da Cultura (SMC) realiza na Praça Dante Alighieri uma extensa programação artística e reflexiva. A solenidade de abertura do palco acontece, às 18h, com uma performance artística dos Lanceiros Negros de Caxias do Sul. Na sequência, às 19h, será apresentado o Preview Mississippi Delta Blues Festival. Até o dia 27, ocorrem ainda uma série de atividades alusivas à Semana Municipal da Capoeira e à Semana do Hip Hop.
- Documentário
Sessão comentada e exibição do documentário Meu Chão - Clubes Negros do Rio Grande do Sul, com participação da Produtora TranseLab, Representante do Comune, Gui Ribeiro, presidente do Clube Gaúcho, e Jorge de Jesus, codiretor do filme. A exibição ocorre no dia 29, às 19h, na Sala de Cinema Ulysses Geremia, no Centro de Cultura Ordovás (Rua Luiz Antunes, 312 - Panazzolo). Entrada franca.
- Colóquio
No dia 21, às 19h30min, ocorre o 21º Colóquio no Arquivo Histórico Municipal. O tema deste ano é “Memórias coletivas: trajetórias e vozes do Beltrão”. O evento é realizado em parceria com o Vielas Espaço Cultural.
- Debate
Entre as atrações, na próxima sexta-feira (18), às 19h30min, ocorre o debate Escurecendo os fatos: um debate crítico sobre a existência de acervos de culturas não-brancas em instituições de memória. A realização é da Secretaria da Cultura em parceria com o Vielas Espaço Cultural e com o projeto Mosaico na Quebrada. O evento ocorre na Sala de Pesquisa do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. A entrada é gratuita.
A mediação da atividade fica a cargo de Bruna Letícia de Oliveira dos Santos, doutoranda em História pela Unisinos. Atualmente, é professora da rede municipal de educação de Caxias do Sul, e coordenadora do Grupo de Trabalho Emancipações e Pós-Abolição da Anpuh - seção RS.
Para compor a mesa, foram convidados o DJ e cineasta Jorge de Jesus, codiretor do documentário “Meu Chão”, o rapper Rafa Rafuagi, da Associação da Cultura Hip Hop de Esteio, e Fabrício Romani, doutorando em História pela UFRGS, autor do livro Sob a Proteção da Princesa e de São Benedito: identidade étnica, associativismo e projetos num clube negro de Caxias do Sul (1934-1988).
Mais cedo, às 18h30min, o Arquivo Histórico realizará a exibição do filme Meu Chão, com acesso gratuito.
- Exposições
Exposição fotográfica Refrações negras, o Beltrão que eu vejo, de Shaiane Giacomelli. Visitação até o dia 30, de segunda a sexta-feira, das 10h às 16h, na Sala de Pesquisa do Arquivo Histórico Municipal (Av. Júlio de Castilhos, 318 - Bairro Nossa Senhora de Lourdes).
Exposição fotográfica Raízes, de Tatieli Sperry e Grife NêgaNagô. Visitação até o dia 30, de segunda a sexta-feira, das 10h às 16h, na Sala de Pesquisa do Arquivo Histórico Municipal.
Exposição Realidades, do repórter fotográfico William Cabral. Visitação até o dia 30, de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h, no saguão da Secretaria da Cultura (Estação Férrea - Rua Doutor Augusto Pestana, 50).
Exposição Presença Negra no Margs - Itinerância Sesc-RS, com curadoria de Izis Abreu e assistência de curadoria de Amanda Wink Barcelos. Visitação até o dia 3 de dezembro, de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h e, aos sábados, das 10h às 16h, na Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim (Rua Dr. Montaury, 1.333 - Centro).