É no interior de Antônio Prado, mais especificamente na comunidade de Santo Isidoro, que a historiadora Magali de Rossi ambienta sua primeira memória envolvendo o chamamé. Ela conta que, quando tinha cerca de 10 anos, escutou pela primeira vez uma fita cassete do icônico acordeonista Gilberto Monteiro, comprada pelo pai.
– Foi meu primeiro contato, ali despertou algo – lembra ela.
O ouvido jamais esqueceu daquela sonoridade e, anos depois, a trajetória profissional de Magali estreitaria laços com o chamamé de maneira contundente. Já morando em Porto Alegre, ela foi produtora executiva do Encontro Internacional de Chamameceros – idealizado por Jorge Guedes, Luiz Carlos Borges e Yamandu Costa – durante seis anos. Nessas andanças, também conheceu o acordeonista argentino e chamamecero Alejandro Brittes, que se tornou seu companheiro de vida. Foi ao lado dele que Magali transformou em livro a pesquisa sobre a qual se debruçava havia pelo menos 15 anos. Ela e Alejandro assinam o livro A Origem do Chamamé (269 páginas, R$ 49,90), lançado por meio do edital Criação e Formação - Diversidade das Culturas, executado pela Fundação Marcopolo com recursos da Lei Aldir Blanc. A obra, já disponível nas principais livrarias, disseca a história de um ritmo com os dois pés fincados na ancestralidade.
– Foi um processo bastante intuitivo, apesar de científico. Nós nos perguntávamos por que o chamamé emociona tanto as pessoas? Por que se dança em sentido anti-horário? Por que se rasgueia o violão ao invés de se dedilhar? Por que o bailarino sapateia quando dança? Foram perguntas assim, do ponto de vista simbólico e imaterial, que nos motivaram. Na tentativa de responder essa transcendência comportamental, se baseou a pesquisa – explica Magali.
Para responder questões assim, a dupla de autores precisou ir muito além dos registros oficiais, que apontam o nascimento do chamamé em 1931. Os pesquisadores sabiam que a origem dessa história estava muito mais para trás. E, para compreendê-la, era fundamental o contato com as tribos guaranis. Magali circula nas aldeias indígenas do Estado desde 2005, convivendo com rituais intimamente ligados com a música. Ela explica que a origem do chamamé se deu por meio do contato dos guaranis com os padres europeus incumbidos de organizar as reduções jesuíticas – no Brasil, isso aconteceu a partir do século 16.
– Os padres vinham da Europa trazendo o barroco, mas eram orientados pelo Vaticano a não usar música aqui, porque música é uma coisa pagã. Só que os padres só conseguiram catequizar quando começaram a colocar a música na missa. Depois, os guaranis aprenderam a fazer instrumentos musicais, partituras. Quando terminam as reduções, depois da Guerra Guaranítica, todos esse conhecimento ficou com os indígenas. É o encontro desses dois grandes paradigmas culturais que gera o chamamé – contextualiza Magali.
Binário composto
O contato com os rituais guaranis também permitiu uma descoberta inédita da pesquisa de Magali e Alejandro. O binário composto – tempo rítmico que caracteriza o chamamé – é uma célula rítmica para entrar em transe. Para os guaranis, o binário composto só é tocado dentro da casa de reza, em rituais sagrados dos quais o homem branco não pode participar. Para ir mais a fundo na descoberta, os autores realizaram uma testagem Kirlian (método que fotografa a aura das pessoas, refletindo seu estado físico e emocional, e detectando doenças). O experimento foi realizado com 13 voluntários de gostos musicais distintos.
– Quando se fotografava sem a música, apareciam vários problemas, depressão, isso e aquilo. Aí, quando os voluntários eram expostos ao tempo do 4/4 (que caracteriza ritmos como a vanera e o tango), já melhorava bastante; mas quando a gente passava para o binário composto, explodia o campo eletromagnético. Além de equilibrar elementos negativos, doenças, estresse, o dedo da pessoa ficava rosado, o que significa alteração de consciência. Então, quando os guaranis dizem que o binário composto é entrar em transe, eles estão falando a verdade. O chamamé herda esse binário composto ancestral. É uma doidera – brinca Magali.
Na raiz do ritmo estão presentes ainda marcas dos povos celtas e até a música cósmica revelada por Pitagoras, por exemplo. Magali explica que a pesquisa permitiu que ela descobrisse uma forma de dialogar com o mundo através do chamamé. De forma contundente, o livro também revela a importância da cultura indígena como parte fundamental da construção cultural e social da qual somos integrantes.
– Quando você respeita a cultura guarani, está respeitando o chamamé. Do contrário, você está renegando sua própria história musical. O livro vem exatamente num momento onde os indígenas estão perdendo território, estão sendo exterminados. A cultura é um braço social para mostrar que está tudo interligado, para dizer que somos o que somos porque temos eles – defende a historiadora.