Demolir e preservar são palavras capazes de dar calafrios em proprietários de imóveis antigos, dependendo do contexto. Se de um lado da balança há o desejo de manter viva uma memória afetiva relacionada a uma casa ou um prédio, de outro os custos de manutenção e a desvalorização das estruturas fechadas e desabitadas também precisam ser pesados. Em meio a isso há o compromisso com a memória da própria cidade, fator que pode limitar as possibilidades quando o patrimônio passa a ser tombado ou inventariado pelo município.
Em Caxias do Sul, enquanto se discute a legislação quanto a idade mínima para demolição de imóveis antigos e também a atualização do inventário do município, exemplos dos benefícios de preservar são cada vez mais frequentes na cidade e no interior, mostrando que não é difícil fazer do limão a limonada. Ou, como diz a diretora da Divisão de Proteção do Patrimônio Histórico e Cultural (Dippahc), Rosana Guarese, "preservar não é um monstro de sete cabeças".
Na Avenida Júlio de Castilhos, as irmãs Fernanda, Gisele e Graziela Sanvitto comemoram em agosto os dois anos do Colavoro Sanvitto Coworking, espaço comercial e cultural instalado no casarão que completa 75 anos em 2021. O tombamento pelo Patrimônio Histórico e Cultural de Caxias do Sul, em 2015, ao mesmo tempo que garantiu a conservação da memória da família, conferiu às herdeiras a missão de dar um uso imediato ao imóvel, para que não ficasse entregue à ação do tempo.
- Há 10 anos nós pensávamos no que fazer com a casa, e o tombamento estreitou um pouco as possibilidades, por impedir de mexer na estrutura. Porém, naquele momento a ideia de um coworking já estava mais madura, porque havia mais exemplos para nos espelharmos. Além dos espaços para escritórios, fizemos o miniauditório para cursos e treinamentos, um espaço de gastronomia e também sala para exposições de arte. Foi uma solução moderna, que contemplou preservação e rentabilidade - destaca Graziela.
O palacete é a única residência particular projetada por Vitorino Zani (1900-1960), arquiteto e escultor caxiense que projetou a Igreja São Pelegrino e cerca de outras 70 igrejas pelo Rio Grande do Sul, unindo estilos como o barroco, o neogótico, déco e modernista, mistura que o encaixa como eclético.
- Meus avós (Guerino Sanvitto e Therezinha Pauletti) eram pessoas simples, vindas do campo, mas tinham esse olhar para o belo. Especialmente minha avó, que imagino ter sido quem teve a ideia de contratar esse arquiteto - comenta Graziela, que frequentava a casa na infância quando o pai, Ely Andreazza, tinha ali seu consultório de oftalmologia.
A aposta em transformar a propriedade num espaço colaborativo e cultural tem se mostrado acertada. Na pandemia, embora eventos tenham sido cancelados e a circulação no prédio tenha reduzido, as irmãs ganharam novos locatários que optaram por fechar suas salas comerciais e aderir ao coworking, como psicólogas e advogadas e arquitetos. Inclusive dois bancos, que não têm agência em Caxias, instalaram escritórios no espaço, que este mês irá receber um novo estabelecimento gastronômico e também se prepara para retomar a programação artística.
- Estamos com uma operação saudável, que talvez ainda não tenha dado o retorno que um investimento desse porte demanda, mas que tem se sustentado. Como família, ficamos especialmente felizes por estarmos conseguindo ajudar a abrir os olhos de pessoas que antes não reparavam em detalhes de um prédio histórico e ao circular pelo Colavoro se interessam e valorizam - avalia Graziela.
Na colônia, uma casa prestes a virar atração turística
Não é um movimento comum o pedido de tombamento partir do próprio proprietário, que normalmente prefere preservar sua liberdade de intervenção ou mesmo de venda do imóvel. Foi, portanto, com curiosidade, que a Divisão de Patrimônio recebeu o contato de uma família de São Virgílio da 2ª Légua, a fim de pedir a análise e dar início ao processo de perenizar uma casa construída há quase 80 anos, com porão de pedra, andar intermediário de madeira e sótão com encaixe de madeiras.
Estudante de Direito, Thiago Paniz, 21, teve o contrato de estágio encerrado na pandemia. Sem aulas presenciais, deixou a cidade e voltou a morar na colônia, onde a família cultiva uva e noz pecan, e onde a nonna, Rosalia, faz suas chimias, grostolis e biscoitos coloniais. A ideia que ele e um tio tiveram, de explorar a propriedade de 19 hectares para o turismo rural, casou com a intenção de perenizar a casa original, desabitada há 10 anos, que se deteriorava a olhos vistos.
- Sempre ficávamos naquela dúvida: reformar ou desmanchar? Mas é a memória da família que estaria indo abaixo, e isso nos deixava muito sentidos. Toda a casa foi construída a mão pelo meu bisavô - conta Thiago.
O que emperrava uma ideia de reforma eram os custos. Foi quando Thiago recebeu o conselho de um vizinho quanto à possibilidade de tombamento pelo município, que dá como contrapartida, além de isenção de IPTU proporcional à área tombada, os chamados índices de potencial construtivo, que podem ser negociados no mercado imobiliário para ajudar a bancar a reforma.
- Por obrigação, em caso do tombamento aprovado, teríamos de utilizar metade do valor arrecadado com a venda dos índices construtivos para reforma. Mas nossa ideia é investir todo o valor, estruturando uma cantina da família e integrando a propriedade a uma proposta de turismo rural aqui na região, que já tem uma cervejaria (Pavos Brassaria) desse vizinho que me deu a dica. É algo que entendemos que também seria de total interesse para a cidade - conta o estudante.
Após a visita do órgão municipal e do Compahc, e de uma entrevista realizada na semana passada, os Paniz aguardam a resposta sobre o tombamento. Com a certeza de que a casa estará de pé para ajudar a contar a história, a ideia é abrir a propriedade para visitação, oferecendo piqueniques com produtos da horta e da cozinha da nonna, além de suco de uva integral.
Quando um prédio reencontra sua vocação
Famílias numerosas tendem a encontrar mais dificuldade quando se veem donas de cotas de um mesmo imóvel. Basta lembrar do Moinho Covolan, em Farroupilha, prédio histórico que é alvo de disputa judicial entre os 16 herdeiros de Antonio Covolan, e teve de ir a leilão em janeiro deste ano (sendo arrematado por valor muito menor que o de mercado, pela Associação Cultural que ocupa o prédio).
Em Caxias do Sul, o destino do prédio histórico que abrigou a Cantina Pão e Vinho, no bairro Santa Catarina, também preocupava os nove herdeiros diretos desde o fechamento do negócio, em 2011. A diferença em relação a Farroupilha foi o surgimento de uma empresa disposta a investir em parceria com a família. No caso, a Palk Business Hub, que assumiu a curadoria comercial da revitalização do espaço, tombado desde 2005, ajudando a transformá-lo num elegante complexo comercial que tem o Tannat Wine Bar como primeiro locatário.
- Seria muito difícil agradar a todos os proprietários se não fosse a entrada de alguém com um olhar profissional para viabilizar o projeto. Patrimônios históricos precisam estar ocupados e a Palk tem estudos para fazer o mesmo modelo de negócio, de condução do restauro e "devolução" do imóvel tombado para a comunidade - comenta Luciano Bulla, executivo da Palk.
O prédio foi erguido em pedra por José Andreazza, em 1896, e acompanhou o auge da vitivinicultura no começo do século passado. Foi adquirido por Ângelo Tonet, em 1947, após o falecimento de Andreazza. Tonet deu seguimento ao uso para comercialização de vinhos até os anos 1970, quando transferiu o negócio para a Linha 40. No mesmo ano, duas filhas de Ângelo, Colorinda e Marilene, abriram no local a Cantina Pão e Vinho, que funcionou até 2011.
- Desde o tombamento e a troca pelos índices construtivos a família vinha tratando da reforma junto com a prefeitura e com dois arquitetos. Também queríamos um locador que pudesse dar sequência à história do prédio voltada para a vitivinicultura e a gastronomia, e por isso vibramos com a parceria que permitiu trazer o wine bar. Acredito que a família, os investidores e a cidade saíram ganhando com essa revitalização que pôde se dar dentro do contexto histórico - destaca Márcio Tonet, um dos proprietários do imóvel.
A casa que preserva também foi preservada
Instituição fundamental para a salvaguarda de documentos, fotos, depoimentos e todo tipo de relíquias que contam a história de Caxias do Sul, o Arquivo Histórico Municipal também é exemplo de preservação com ocupação de um prédio histórico. No final dos anos 1970, houve na cidade um movimento a favor da preservação do prédio conhecido como "antigo Hospital Carbone", erguido em 1905, em alvenaria.
Antes de ser adquirido pelo médico Rômulo Carbone para instalar sua Casa de Saúde, em 1924, o prédio originalmente construído como moradia para a família Rovea, abrigou comércio de secos e molhados e outras casas de negócio. A partir dos anos 1940, o prédio passou a servir ao mesmo tempo como moradia coletiva e pensão, até sofrer uma ameaça de demolição, em 1979.
Com a sociedade tocada pela possibilidade de perder o prédio, um grupo de 18 empresários adquiriu o imóvel e o doou ao município, condicionando a sua ocupação com o acervo documental da cidade. O prédio passou por reformas e a transferência do acervo se deu em 1996, com a ocupação definitiva em 1999. A edificação foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Estadual - IPHAE, em 1986, e pelo Município de Caxias do Sul, em 2002.
Neste mês de agosto, o Arquivo Histórico Municipal comemora 45 anos de existência. A data será festejada com uma programação interativa a partir desta segunda, até sexta-feira. Destaque para o lançamento do projeto Cidade com memória, pessoas com história: preservação, acesso e identidade, que visa a criação de um vídeo institucional, elaborado a partir de depoimentos de pesquisadores, doadores, funcionários, ex-diretores e demais interessados em falar sobre sua relação com o Arquivo. Os vídeos, com depoimentos de até um minuto de duração, deverão ser enviados para o e-mail atendimentoarquivo@caxias.rs.gov.br, até 5 de setembro.
Outro destaque é o lançamento de um vídeo com um tour virtual pelo Arquivo, no próximo dia 4. O material estará disponível em https://sites.google.com/view/arquivohistoricojsa/.
A programação completa da semana de aniversário está no mesmo site.
Legislação pode ter mudanças
Uma tentativa de alterar a lei que trata da preservação de prédios antigos de Caxias do Sul, aprovada sem passar por audiência pública, virou questão judicial. Pela Lei Orgânica do Município, imóveis com mais de 50 anos só podem ser demolidos após passar por análise do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (Compahc). O Projeto de Lei de Adiló Didomenico, ainda vereador pelo PSDB, aprovado no último dia de trabalho do Legislativo no ano passado, no entanto, passava essa obrigatoriedade para prédios com mais de 75 anos. Após muita discussão pela forma como a alteração foi imposta, uma ação proposta pela OAB suspendeu a legislação, que agora está sob análise do poder judiciário.
Unânime entre os envolvidos é a questão de que a idade, meramente, não é um critério que dê conta de avaliar a importância histórica e cultural de uma edificação, tampouco a necessidade de preservá-la através de tombamento ou inventário (dispositivo que dá uma proteção em nível menor). Contudo, a falta de um método melhor elaborado para o arrolamento dos imóveis de importância para a memória coletiva de Caxias, justificaria a necessidade de manter, pelo menos provisoriamente, o requisito dos 50 anos. É o que defende a presidente do Compahc, a advogada Ana Carla Furlan.
_ Muitas vezes um imóvel tem determinada idade, mas não tem uma arquitetura diferenciada, nem está dentro de um contexto que justifique sua preservação. A questão da idade acaba sendo importante porque Caxias é uma cidade jovem, e nós temos muitos imóveis com arquitetura diferenciada, do período pós-guerra, que, se trabalhássemos na casa de 75 anos, acabaríamos por perdê-los _ avalia.
A arquiteta e diretora da Dipphac, Rosana Guarese, acredita que será encontrada uma solução rápida e consensual, mas destaca a necessidade de qualificar o inventário do município, a fim de torná-lo um meio mais eficaz para garantir as preservações necessárias, ao mesmo tempo desburocratizando as análises:
- Qualificar o inventário existente não é algo que se faça de um dia para o outro, principalmente pelo fato de que temos uma equipe pequena para fazer todo o levantamento de documentação, material fotográfico e fichas técnicas necessárias. Enquanto isso, acreditamos que o critério da idade deve continuar sendo usado para da uma garantia de que não perderemos nada de valor histórico, pois já perdemos muita coisa. De todo modo, no momento os processos estão parados enquanto a questão estiver judicializada.
A URGÊNCIA DA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
E como ficam os proprietários de casas ou prédios com restrições para intervenções ou demolição, mas que não têm condições de arcar com os custos de manutenção? Não há solução mágica. Como ser dono de qualquer coisa, é preciso assumir a responsabilidade e buscar uma saída criativa, seja por iniciativa própria, aluguel ou algum modelo de parceria para exploração do imóvel.
= Nenhum bem, tombado ou inventariado, tem restrição quanto ao seu uso ou mesmo a sua venda. Responsabilidade de manutenção existe para os proprietários de qualquer imóvel. Às vezes falta a iniciativa da própria pessoa nos procurar para se informar quanto ao que ela pode ou não fazer, porque ela já parte de um princípio errado de que, se o imóvel é tombado ou inventariado, ela está condenada a não poder fazer nada = comenta Rosana.
Ana Carla, presidente do Compahc, salienta que, num parecer recente entregue à prefeitura, com considerações do órgão sobre as mudanças na lei de preservação, consta a necessidade de cumprir com a lei 7495, de 2012, que trata da proteção ao patrimônio cultural do município e que, em seu artigo 3º, autoriza o executivo a buscar recursos, incentivar parcerias público-privadas e realizar obras de infraestrutura, firmar convênios e prestar serviços.
= É importante que a prefeitura possa buscar meios que permitam proteger suas construções históricas, além de investir em educação patrimonial, para trazer esse tema mais para perto dos caxienses e para que as pessoas possam ter uma noção mais clara sobre a importância e sobre o por que de se preservar = destaca.
A mesma lei determina que, em caso de não autorização de licença de demolição, reforma ou alteração de bem imóvel não tombado, o município deverá proceder ao tombamento, a fim de garantir aos proprietários subsídios para melhorias no patrimônio.