Como nasce uma mulher? Diria o senso comum, aquele conhecimento que se tem, mas não se sabe ao certo de onde vem, que é quando a mãe dá à luz uma menina. A partir daí ficaria fácil identificar a criatura que ali se fez: laço no cabelo, roupa rosa, brinco na orelha. Mas essas coisas são muito pequenas para definir um ser tão complexo. Não é razoável que se estabeleça a profundidade da mulher apenas a partir das coisas que lhe são permitidas ou oferecidas. Exemplificando: Rosa não é cor de menina, é uma cor somente; cuidar de crianças não é algo da mulher, é algo que o responsável por elas deve fazer; zelar pela casa também não é algo exclusivo das mulheres, mas sim de quem tem uma casa; vaidade, tampouco, é apenas um conjunto de práticas daqueles que se importam, minimamente, com sua aparência física.
A partir dessas convenções sobre o que é e como é ser mulher, em 1949, a filósofa francesa Simone de Beauvoir escreveu seu mais famoso livro, O Segundo Sexo, onde, ela enunciava: não se nasce mulher, torna-se. À época, foi transgressor, pois a sociedade se organizava dentro da tradição igreja, família e estado — pouco se via fora dessa tríade. Hoje, começamos a entender e aceitar que Simone nos trazia a simples questão: ser mulher vai muito além do nosso comportamento ou do que se apresenta em nossas genitálias.
— Precisamos entender, que quando Beauvoir afirma que não se nasce mulher, torna-se, ela não está negando a biologia, isso de sermos concebidas como fêmeas, ela quer dizer que o fato biológico sozinho não é suficiente para compor o que entendemos como mulher — esclarece Joanna Burigo, mestre em gênero, mídia e cultura.
Joanna estuda há anos a complexa questão de gênero, essa relação que se concebe entre o homem e a mulher desde que a antiguidade. De acordo com ela, o que entendemos como mulher é uma construção discursiva, um conjunto de códigos e práticas que são sancionados socialmente e, que, atribuímos de maneira naturalizada a seres humanos que vêm ao mundo portanto características sexuais de fêmea.
— A linguagem da feminilidade é aprendida durante toda nossa vida, mas ela não define quem somos — reitera.
Fé em Deus, fé em si
Antes de saber o que era ser mulher, ela se viu adulta. Essa frase marca o início da longa jornada de Olmira Bilia Soares, 61 anos, rumo à mulher que ela é hoje. Olmira, perdeu a mãe aos nove anos e ali, como tão pouca idade, foi viver como gente grande. A fim de ajudar nas despesas da casa, onde morava com seu irmão e a esposa dele, foi trabalhar na lavoura de arroz, um serviço pesado até para um adulto.
— Desde que eu perdi minha mãe eu tenho essa força, essa coragem. Tive que aprender a ser assim para sobreviver _ conta ela. — Para mim não há nada impossível, eu boto Deus na frente e vou — afirma com a resiliência de quem teve o caminho traçado pela tragédia e, ainda assim, encontrou a beleza em viver.
Ela não se acha uma criatura diferente por ser tão resistente, acredita que essa característica é algo nato do gênero feminino.
— A mulher é a criatura mais forte que tem, ela sempre vai em frente, acha um jeito. Toda mulher é forte, se ela não é, é porque não descobriu ainda.
Dona Olmira nasceu em Restinga Seca, mas passou grande parte da vida em Itaqui, na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, e mora em Caxias do Sul há 12 anos. Mãe de seis filhos e avós de onze netos, hoje, divorciada, depois de trabalhar por anos como empregada doméstica, é uma orgulhosa e alegre vendedora de loja de variedades no Centro.
— Trabalhar em loja para mim é serviço fino, eu adoro — comemora Olmira.
A saga heroica da jovem mãe
A maternidade é intensa e complexa para qualquer uma, mas quando esse momento se antecipa e chega ainda na adolescência tudo é potencializado. Nessa situação, o caminho do ser mulher dá lugar ao de ser mãe. Não é clichê dizer que ao nascer um bebê nasce, também, uma mãe. Mas não é uma regra que se nasça uma mulher, vale mencionar. Aléxia Gonçalves, 22, por exemplo, é mãe do espoleta e inteligente Hector. Esses adjetivos foi ela mesma quem deu a ele. Mas, somente após quatro anos de maternidade foi que ela teve o grande encontro com a mulher que a habitava.
— Aos 21 anos de idade, em 2020, passei a me sentir mais confiante nas coisas que eu estava fazendo, com minhas escolhas e, principalmente, com minha maternidade, comecei a sentir a necessidade de ser sincera comigo mesma, validando, acima de tudo, minhas emoções — conta.
O processo pelo qual Aléxia passou é bem comum de se ouvir das mulheres-mães. Dizem ser uma espécie de perda, um lugar onde se deixa de ser um indivíduo com necessidades para se doar integralmente para outra criatura que depende totalmente de você. Mas, também, é comum ouvir das mesmas mulheres que esse se perder fez com que se encontrassem plenamente.
Naturalmente, uma mãe solo adolescente enfrenta desafios absurdos. Aléxia não foi exceção. Da mesma forma que milhares de outras, teve sua cota de dor, mas como na jornada da heroína, ela superou e se enxerga vencedora agora.
— Ouvir em um antigo emprego (pelas minhas costas) que mãe solteira não tem valor no mercado de trabalho e ter o rótulo de "ter sido burra" por ser mãe antes de ter a carreira pronta me abalou muito na época, mas hoje eu sei do meu valor — relata ela. — Vejo quem eu sou no meu filho, que me ama e tem uma ligação incrível comigo, e, também, no meu trabalho, que conta comigo, confia e investe em mim — conclui.
Aléxia é coordenadora de atendimento publicitário e só ela sabe dizer como foi duro chegar a essa satisfação de ser quem se é. Para ela, isso se deve à resiliência do ser mulher.
— De onde vem essa resiliência da mulher não é um lugar bonito, tem muita dor e opressão histórica. Mas acho que a nossa resiliência faz parte da potência que a gente tem, com a capacidade de dar conta do nosso cotidiano — expõe.
O arquétipo da mulher guerreira está no inconsciente coletivo, na história do Brasil, talvez do mundo. Aquelas que lutam por si e por suas crias como leoas, protegendo a ninhada, estão por aí, trabalhando arduamente para dar um futuro melhor para seus filhos. Ao ter sua trajetória cruzada pela de Hector, seu filho, Aléxia lidou com o que há de mais verdadeiro na maternidade julgada, romantizada e sacralizada: mães não são perfeitas ou santas, são mulheres comuns, que erram e acertam, sentem dor, têm sonhos e necessidades básicas a serem atendidas.
Para além da maternidade, ela aprendeu uma lição: amar e cuidar de si mesma, não com egoísmo, mas com a compreensão de que Hector merece uma mãe feliz, com um futuro promissor.
— Quando eu me vi mulher passei a não aceitar desrespeito, relacionamentos tóxicos, misoginia. Chega um ponto que a gente não quer mais manter o que invalida quem a gente é; eu quero quem me quer, eu me quero, cuido de mim e aceito quem eu sou —finaliza Aléxia, celebrando.
Quero ser cada ser mais eu
— Eu sempre fui filha de fulano, depois esposa de sicrano, e agora quem eu sou? Eu sou a Suelen!
Dessa forma que se começa a compreender a mulher que Suelen Hahn é atualmente.
Professora de inglês e empreendedora no ramo da moda, descobriu, ali pelos 30 anos, que a única referência que devia ter de si mesma era a mulher que ela carregava sob a pele, dentro de seu peito e de suas vivências.
— Eu quero ser a mulher que mora dentro de mim, independente do que o mundo diga _ pontua.
A vida de Suelen começa com a história de uma bebê que teve a sorte de encontrar seus pais logo após nascer, em Criciúma, no extremo sul de Santa Catarina. Aquela bebê que veio ao mundo sentindo a brisa do mar achou o acolhimento e afeto num casal que residia na Serra gaúcha.
Com cinco dias de nascida, veio morar em Caxias do Sul. Foi criada como toda menina, cercada de cuidados e regras. Amparada por todo o conceito de feminilidade, onde aparência e bom comportamento são leis.
— Minha mãe me criou muito menininha, me via nessa figura feminina. Com o tempo fui modificando meu jeito de me ver mulher — conta.
A virada de pensamento e de práticas cotidianas veio após ela se fazer a pergunta: que tipo de mulher eu quero ser? Essa pergunta só pode ser respondida após sair da casa dos pais, se casar e se divorciar.
— Fui a mulher princesa, me casei e virei uma mulher prática, depois que me separei me tornei uma mulher forte — relata ela.
Entre quem Suelen foi criada para ser e quem ela se tornou há um mar existencial tão profundo quanto aquele que ancorou seu nascimento em Criciúma. A mulher que ela se tornou é visivelmente liberta: o cabelo é curto, quase raspado. O estilo próprio impera, muitos adereços contam que vaidade não é só seguir a moda comercial e mostra que ditar tendências de vestuário é algo que ela domina.
Com base em tudo que já viveu mesmo sendo tão jovem, Suelen tem os olhos no horizonte e a meta é seguir em frente, sendo novas versões de si a cada dia.
— Mulher é fênix, morre e renasce todo dia. Não é fácil ser mulher, mas a gente faz isso muito bem — finaliza.
Amor-próprio, de mãe para filha
Foi com sua mãe que a jornalista Rachel Zilio, 41, entendeu que ser mulher, de fato, tinha, sim, a ver com dor, mas, também tinha uma relação profunda com amor-próprio e dignidade.
Segundo ela, em uma conversa, sua mãe lhe falou sobre a importância de se respeitar, pois ainda enfrentaria muitas situações no dia a dia e era importante nunca esquecer de estabelecer limites.
— Fui uma criança insegura, as palavras dela me tocaram e tenho isso como objetivo diário: me amar sempre, mas acima de tudo, me respeitar.
A mãe de Rachel tentava ali, preparar a filha para um mundo que cotidianamente é cruel com as mulheres. A sexualidade delas é julgada, a beleza é padronizada, o salário ainda não se equipara ao dos homens em funções semelhantes. Sendo assim, é fácil compreender Rachel quando reclama que espera mais dos tempos em que vivemos, no quesito paridade de gênero.
— É inacreditável que sejamos punidas pelo simples fato de sermos mulheres. Vivemos em 2021 e ainda sofrer preconceito, discriminação, violência de todas as formas.
Nascida em Bagé, ela reside em Caxias do Sul há 19 anos é uma ativista pelo bem-viver de todos os seres, ama plantas, bichos e pessoas e está sempre pensando em como tornar o mundo melhor para que as mulheres vivam. Ela acredita que o melhor está por vir. Acredita na força da união afetiva e política das mulheres para a construção de um mundo mais justo.
— Desejo que nós, mulheres, estejamos cada vez mais unidas e atentas umas às outras, nos respeitando, independentemente de qualquer diferença.
Uma mulher brasileira
Entre Marias, Elzas, Amálias, Terezinhas e toda sorte de nomes, as mulheres, atualmente, compõem pouco mais da metade da população brasileira. Isso, mencionando somente a cisgeneridade, que é a condição da pessoa cuja identidade corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Ou seja, as transexuais não são contabilizadas ainda como mulheres no recenseamento demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A cabeleireira Abigail Mezzomo Peletti, 21, por exemplo, é uma dessas mulheres não validadas com a cidadania feminina pelo estado brasileiro. Apesar de, socialmente, ainda ser forte o preconceito contra pessoas transexuais, Aby, como é carinhosamente chamada pelos amigos, se vê, se compreende e se aceita como mulher.
— Sou mulher desde que me entendo por gente, só não tinha estrutura nem referências para lidar com aquilo naquele tempo, apenas sentia —— relata.
Para ela, se tornar mulher foi mais intenso e mais complexo, precisou buscar formas de possibilitar que a mulher que morava em seu interior viesse à tona e tomasse conta do seu corpo físico.
— Nunca achei que fosse fácil ser mulher, desde cedo me incomodava a submissão que a sociedade exigia do feminino, independente de em que corpo esse feminino habitava, mas se eu pudesse escolher, nasceria mulher mil vezes. Amo o meu processo, a cada dia mais _ avalia.
Abigail se entendeu mulher e a sociedade assiste sua autoafirmação.
— Espero que eu e minhas irmãs (transexuais) consigamos, num futuro próximo, aumentar o "35" — sonha.
O número mencionado por ela se refere à expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil, o país que mais mata travestis e transexuais no mundo.