“Eu perdi uma criança durante a gravidez (...) Eu senti que meu corpo foi tirado de mim, pois haviam todas essas pessoas ao redor. Meu corpo não era meu”. A declaração é da roteirista Kata Wéber, que escreveu o filme Pieces of a Woman e é esposa do diretor do longa, o húngaro Kornél Mundruczó. Inserido no catálogo da Netflix há pouco mais de duas semanas, a obra tem chamado atenção do público por conta de sua abordagem pouco usual da maternidade – onde a felicidade dá lugar a um abismo traumático –, além de atuações condizentes com a complexidade do tema.
Martha (vivida por Vanessa Kirby) é apresentada aos olhos do espectador enquanto participa de uma festinha organizada pelos colegas de trabalho, na qual precisa lidar com situações como permitir que todos acariciem sua barriga de grávida e responder todo tipo de pergunta sobre o bebê. Em casa, seu refúgio mais seguro, ela conta com o suporte amigável e carinhoso do companheiro, Sean (Shia LaBeouf). É também nesse ambiente doméstico confortável e feliz que ela decide ter sua filha, por meio de um parto humanizado com doula.
A sequência da chegada da criança é uma das mais impactantes do filme. São quase 30 minutos de um plano-sequência que coloca o espectador para vivenciar alegria, emoção, expectativa, dúvida, dor, pânico e horror (não necessariamente nesta ordem). Só depois de o parto dar errado – spoiler que está na sinopse, então, está liberado – é que o letreiro do filme surge na tela. E é a partir dessa tragédia pessoal que conheceremos mais sobre cada um dos personagens, especialmente Martha, já que o filme traz uma perspectiva feminina mais dominante.
O luto se manifesta de formas diferentes para cada personagem, mas Martha é a única que sofre pressões externas sobre como deveria agir. Mesmo devastada com o que passou, ela quer voltar ao trabalho, retomar a vida, seguir em frente... Mas precisa lidar com uma mãe controladora (na pele da maravilhosa Ellen Burstyn), com um marido carente e problemático e com um processo contra a parteira que acaba se tornando público.
A sensação de perder o poder sobre seu próprio corpo, mencionada pela roteirista, surge no filme com diferentes roupagens. Num geral, Pieces of a Woman mostra uma mulher mergulhada em introspecção e sofrimento que precisa resgatar sua voz, brigar por seu poder de escolha. Nessa gangorra é que se apresenta a visceral atuação de Vanessa Kirby, que tem sido apontada como possível indicada ao Oscar pelo papel – ela foi escolhida melhor atriz no Festival de Cinema de Veneza.
O longa de Kornél Mundruczó também traz uma metáfora sobre a germinação, processo íntimo que também diz respeito ao corpo feminino.