Um muro peculiar, montado como uma grande escultura multidimensional em basalto, anuncia que ali a pedra tem uma importância fora do comum. Não bastasse, a propriedade está situada no distrito de São Pedro, nos Caminhos de Pedra, em Bento Gonçalves. Ao atravessar o portão de ferro que ocupou uma antiquíssima residência na Rua da Praia, em Porto Alegre, o visitante deve preparar-se para observar a transmutação do material bruto em poesia. O mago por trás da criação é o escultor João Bez Batti, que completa 80 anos na próxima quarta-feira e dá um jeito de ressignificar até a idade.
– Oitenta, não! São quatro vezes 20, ou quatre-vingts (pronuncia-se catrevã), como dizem os franceses. Já estou pensando nos noventa – sentencia, como quem tenta parar o tempo para dar conta de realizar todos os projetos que tem em mente.
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Bez Batti está empolgadíssimo: diz experimentar, pela primeira vez, a sensação de que está no caminho certo – apesar dos 60 anos de trajetória artística – e entusiasmado com os trabalhos realizados para a exposição e o livro Dialogando com Picasso, em que homenageia um de seus mestres.
– Estudo Picasso desde os anos 1980. Nesse trabalho, transformo a pintura e o desenho das mulheres dele em esculturas – relata, sem precisar quantas peças como essa abaixo a coleção terá.
As reconhecidas cabeças esculpidas minuciosamente em basalto ganham influências ainda mais cubistas, e ao lado delas surgem touros de corpo inteiro ou em cabeças como se emergidas da tela de Guernica, uma das mais emblemáticas do espanhol. O trabalho é primoroso, e boa parte das obras já está vendida. Por causa da pandemia, a vernissage comemorativa foi adiada para setembro de 2021, na Galeria de Arte Gerd Bornheim, em Caxias do Sul. Por outro lado, confessa nunca ter vendido tantas obras em tão curto período de tempo como recentemente.
À medida em que explica a inspiração, pontua a conversa com frases de poetas e escritores. É perceptível que a arte permeia todo o universo dele, e para sintetizar sua trajetória cita o alemão Rainer Rilke:
– Ele diz que numa árvore, para chegar a sua magnitude, um ou 10 anos não contam. Tenho uma trajetória de poucos acertos. Mas agora sinto que dei certo – diz, modesto.
Como contraponto ao lirismo e à criação, Bez Batti conta com a racionalidade da esposa, Maria Schirley Bez Batti, 78 anos, com quem divide a vida há 53 anos:
– Schirley diz que eu tenho estrela, ela sempre acreditou e é muito importante para mim.
Ela, por sua vez, ao rememorar a trajetória repleta de dificuldades, sente uma satisfação em ver aonde a arte os levou.
– O trabalho do João foi uma opção de vida para nós, era a única coisa que ele sabia fazer. Tinha certeza que ele chegaria onde chegou – conta a advogada e professora aposentada, responsável pela administração da família, da casa e da parte financeira de Bez Batti.
Assim, ele pode manter-se focado à rotina de esculpir basalto no ateliê, onde o tempo parece suspenso, mas o ritmo de trabalho é tão ou mais intenso do que num ambiente fabril:
– A arte não admite nada em paralelo.
O pato, o barco e o Vasco
O desenho é a base do trabalho do escultor João Bez Batti. Foi o pato que a mãe desenhava quando ele tinha quatro anos – e que ele pedia para ser repetido recorrentemente – que o fascinou. Anos mais tarde, teve um vizinho que desenhava barcos, para quem pagava para que pudesse copiar aquelas figuras. Lembra também dos cowboys com revólveres nos bolsos criados por um colega no internato Dom Bosco, na Capital, para onde foi aos 12 anos, ou os traços feitos por um dos padres que lecionava na instituição, tamanha a admiração que nutria pela atividade.
A cena das mais marcantes, no entanto, Bez Batti viu ao chegar ao ateliê de Vasco Prado (1914-1998): a gravura de uma lambreta com uma moça na garupa, tendo as costas como perspectiva.
– Foi uma das grandes emoções da minha vida – relata ele, que foi aluno da primeira turma criada por Vasco.
Na época, ainda trabalhava como carteiro nos Correios e já usava o tempo livre para fazer esboços no papel. Entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, estudou com Vasco e Zoravia Bettiol, cuja residência serviu de palco à primeira exposição de Bez Batti, em 1962. Lá, ouviu do mestre logo no começo que não importava o que estava fazendo naquele momento, pois o trabalho só teria importância daqui a 40 anos. Aos 60 anos de carreira, ele se julga no caminho certo:
– Aprendi estudando e observando Zoravia.
Zoravia, 84, espanta-se ao saber das oito décadas de vida a serem completadas por Bez Batti na próxima semana:
– Não acredito que Joãozinho já vai fazer 80 anos! Joãozinho começou no desenho e passou para a escultura. Ele tinha muita influência do Vasco, então disse que precisava conhecer outros artistas e dei a ele um livro do Alexander Calder. Ele era muito esforçado e acabou por encontrar o caminho dele – revela a artista.
Bez Batti deve ao casal também a decisão de se dedicar integralmente à arte. Depois da primeira exposição, ouviu de Vasco que se não vendesse mensalmente obras que equivalessem ao salário que recebia nos Correios na época, ele o pagaria para que pudesse apenas criar.
– Na mesma época, pedi demissão, e desde então trabalho de sol a sol – recorda.
Zoravia orgulha-se do pupilo:
– Aluno é meio filho, colega e amigo. São três sentimentos maravilhosos, a gente sempre espera que sejam melhores do que a gente, né? Trocamos trabalhos: ele me deu uma (escultura de) cabeça maravilhosa, dei a ele uma tapeçaria...
Mente inquieta
João Bez Batti vive uma rotina controversa. Ao mesmo tempo em que precisa cumprir um ritual, que começa no desenho, passa a uma maquete feita em argila e, dela, para o bloco de pedra, onde a obra é esculpida e polida em um lento processo que utiliza três outras pedras misturadas com água, ele tem pressa. Dorme apenas três horas por noite, preocupado com tudo o que ainda precisa fazer.
– Como vou dormir se tenho que pensar na quilometragem? Minha mãe soube com relativa antecedência quando eu ia nascer. Gostaria de saber um mês antes quando vou morrer, porque aí poderia ir para as cavernas – brinca.
O local favorito, no entanto, é o oposto de hermético. Gosta mesmo é da beira do rio, local que tem ido com menos frequência do que gostaria porque, além de não dirigir, é o único da família com tal preferência. A explicação ecoa na década de 1940. Para ele, é uma volta à infância, como se o menino que foi em Venâncio Aires, criado às margens do Rio Taquari acompanhando a mãe lavar roupas, o puxasse pela mão. Costuma dizer que foi salvo pelos seixos e vê beleza em cada pedra bruta que escolhe e leva para dentro do terreno onde vive. Lá, há material para centenas, quiçá milhares, de esculturas – ele não faz ideia de quantas fez ao longo de 60 anos de atividades. Ultimamente, anda especialmente empolgado com duas rochas de 12 toneladas, que comporão uma peça com mais de 2 metros de altura, em um prédio assinado pelo arquiteto Arthur Casas, no bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
Para a esposa de Bez Batti, Maria Schirley, a virada na carreira do escultor se deu a partir da exposição organizada pelo Instituto Moreira Salles no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), em 2006, ano em que foi considerada a melhor daquele museu, que o levou aos grandes centros culturais e galerias do centro do país.
– Valorizou o nosso trabalho. (Antonio Fernando) De Franceschi, o curador, mudou nossa vida para melhor – sentencia.
Na época, já tinha uma trajetória respeitável, tendo iniciado com escultura em madeira, “porque basalto era quase impossível”. Passou quase 20 anos tentando, de forma autodidata, aprender a manusear o material que o consagrou, o basalto:
– Eu olhava para as obras feitas pelos egípcios e pensava que deveria haver um jeito de trabalhar a pedra.
Agora que conseguiu desfazer o mistério, esculpe rochas até nas raras horas de folga. A casa está repleta das “pedras do descanso” (acima), rochas em tamanho diminuto que ganham vida nas mãos dele, que devem ser tema de uma próxima exposição.
– Vou morrer trabalhando, estou sempre pensando numa nova escultura – completa.