Os anos 1960 foram muito loucos. Havia uma atmosfera de choque, de confronto, de polaridade por causa da Guerra Fria. Essa fricção ideológica, que beirava o assombro, por conta das ogivas nucleares apontadas de um lado ao outro, gerou reações de todas as formas. Sobretudo na arte, com diferentes linguagens, havia contestação com atitudes paz e amor, guitarreira nervosa, ou mergulhos existencialistas e provocadores, de gente como Jimi Hendrix, Janis Joplin, The Doors e Rolling Stones, só para ficar na música. De uma forma geral, nos anos 1960, a tônica era a inovação, em todos os campos do conhecimento, de preferência, com extravagância e ousadia.
Enquanto isso, na Serra gaúcha, em uma região conhecida na época como Encosta Inferior do Nordeste, dois visionários vislumbravam um sonho. A vista privilegiada, sobre um lajeado de pedras, apontava para um horizonte sem limites, e logo ali, aos pés desse platô, se desenvolvia uma cidade tímida e pacata. Os dois visionários, José Luiz Correa Pinto e Péricles de Freitas Druck, entendiam que ali era o lugar perfeito para se erguer um hotel. Por mais visionários e empreendedores que fossem, talvez, nem mesmo eles conseguissem visualizar o legado que o hotel Laje de Pedra deixaria não apenas para Canela, mas também para o Rio Grande do Sul.
Uma das testemunhas oculares desse tempo e, que revela detalhes pouco conhecidos dessa história, é José Vellinho Pinto. Por três legislaturas ele foi prefeito de Canela, mas para além disso, tem no sobrenome a herança desse legado. Porque um dos visionários que sonhava com um hotel imponente, José Luiz Correa Pinto, era o seu pai. E mais do que isso, a área de vista privilegiada, pertencia à família desde a geração do seu bisavó. Não apenas no local onde seria construído o hotel Laje de Pedra, mas também o parque, o condomínio, e mais ainda, o aeroporto de Canela.
— Como eu posso te explicar… Bem, eu tenho uma relação um pouco romântica com esse hotel. Eu sou José, bisneto do João Correa, que é tido como o fundador de Canela, um próspero empresário, que no final do século 19 adquiriu uma gleba de terra grande, onde hoje é Canela. Foi meu bisavô quem trouxe o trem para cá e ajudou a desenvolver ainda mais o município — revela, com orgulho, José Vellinho Pinto, 64 anos.
Na década de 1960, em função da morte dos patriarcas, José Luiz, pai de José Vellinho, herdou as terras.
— Essa área onde hoje está o aeroporto, era, por assim dizer, o potreiro da propriedade rural do meu bisavô. Meu pai então, que era muito empreendedor, tendo recebido por herança a área onde hoje está o condomínio Laje de Pedra, foi comprando mais terrenos dos outros herdeiros e acabou ficando com 64 hectares — conta José Vellinho.
Quem visita a região das Hortênsias hoje, e transita pelas cidades de Canela, Gramado e Nova Petrópolis, não consegue imaginar como era naquela época. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1960, a população de Canela era de 12.296 pessoas, sendo 6.255 mulheres e 6.041 homens. E segundo José Vellinho, os dois hotéis que haviam em Canela, fechavam durante o inverno, porque eram apenas hospedagem de temporada. Ou seja, imaginar um hotel de luxo ali, cravado naquele lugar alto, parecia, sim, loucura. Sendo assim, tudo a ver com a mentalidade dos idos 1960.
Tá, mas e aí, quem seria contratado para fazer o projeto do hotel?
— O primeiro projeto do hotel foi do Oscar Niemeyer. Era um conceito assim, bem 'brasiliense' (risos), grandioso, que previa prédios no entorno do hotel. Eu acho que meu pai entendeu que era grande demais a concepção do Niemeyer e guardou o projeto —acredita José Vellinho.
Ideia maturada
— O tempo foi passando, e lá pelos idos de 1970, meu pai passou a prestar serviços como engenheiro civil a algumas empresas de Porto Alegre, onde morávamos. Entre elas, a Habitasul, do Péricles de Freitas Druck. Eu sei que depois de um tempo eles acabaram formando uma sociedade. A respeito do hotel, eles acabam desistindo do projeto do Niemeyer, mas acabam contratando um outro arquiteto, que era da equipe dele, o Edgar Graeff, que desenvolveu uma concepção bem mais "acanhada" — conta José Vellinho.
Essa "concepção mais acanhada" é uma forma eufemística de tratar dos aspectos arquitetônicos, mas em se tratando do conceito do projeto como um todo, a ideia foi realmente inovar e ousar.
— Nos anos 1970 havia uma política de grandes incentivos do governo, entre eles incentivos para a construção de hotéis. Vários empreendimentos, muito grandes, por sinal, construídos no Brasil, como o Tropical Manaus, foram feitos a partir dessa política desenvolvimentista que havia na década de 1970. Com esse viés, eles acabaram aumentando o projeto e criando um hotel com 250 apartamentos — descreve José Vellinho.
Esses 250 apartamentos, em meados dos anos 1970, causaram impacto em Canela.
— Na verdade, além de um impacto, o Laje de Pedra foi um divisor de águas no turismo da refeição e do Estado. Só para se ter ideia do que significou o hotel, em 1978, quando ele foi inaugurado com 250 quartos, alguns bairros de Canela tinham menos de 50 casas. Ou seja, o Laje de Pedra era tão grande quanto cinco bairros da cidade — explica o pesquisador e funcionário público Pedro Oliveira, canelense, 66 anos. Na época da inauguração, tinha 24.
Sonho concretizado
As obras do Hotel Laje de Pedra, com projeto de Edgar Graeff, renomado arquiteto gaúcho da escola modernista, começam em 1976, mas ficaram quase um ano paradas.
— É aí onde eu entro. Em dezembro de 1977 eu me formo em engenharia civil, e aí o meu pai me chama e diz assim: "Zé, preciso que tu vá pra Canela cuidar da obra do hotel". Então, acabei vindo a Canela, para ser o engenheiro residente e fazer a gestação da obra — conta José Vellinho, a respeito do convite do sei pai, José Luiz.
A data da inauguração não poderia ser mais simbólica para a família Correa, que via nascer ali, naquele lajeado de pedras, em um lugar até então de valor mais sentimental do que comercial, um prédio que acabaria por ser um marco do desenvolvimento do turismo na região.
— O Laje de Pedra foi inaugurado no dia do aniversário do meu pai, em 26 de novembro, do ano de 1978. Por isso, eu tenho essa visão romântica do processo. Quando o Laje foi inaugurado, o maior hotel de Canela na época, o Grande Hotel, tinha 40 apartamentos. Nós inauguramos o Laje com 250 e dobramos o número de quartos na região. Por ser tão bem planejado, o Laje foi o primeiro hotel de lazer cinco estrelas no Rio Grande do Sul — comemora José Vellinho.
Apesar de ter conseguido realizar o sonho, José Luiz acabou por abrir mão da sociedade com Péricles de Freitas Druck, seu parceiro na empreitada, antes de virar para a década de 1980. Druck era advogado e jornalista, fundador e controlador do Grupo Habitasul, que manteve o hotel em funcionamento até o dia 7 de maio deste ano. Por meio de uma nota, a assessoria do hotel Laje de Pedra anunciou o fechamento do empreendimento. "O Grupo Habitasul informa que, em virtude da pandemia do coronavírus, que afetou fortemente o turismo na Serra Gaúcha e o consequente agravamento dos resultados financeiros do hotel, comunicamos o encerramento das atividades".
Poderia ter sido um cassino
Com a morte de José Luiz Correa Pinto e o silêncio de Péricles de Freitas Druck, que não concede entrevistas sobre o hotel Laje de Pedra, dificilmente se saberá, com certeza, se a concepção inicial previa a transformação do empreendimento em um cassino.
— Uma coisa que nunca foi assim, assumida, mas de alguma forma acabei me convencendo ao longo do tempo, era de que tanto o pai quanto os outros sócios, sempre imaginavam que o governo iria liberar o jogo no Brasil, e o Laje de Pedra poderia virar um hotel cassino — acredita José Vellinho.
O pesquisador Pedro Oliveira, autor de cinco livros sobre aspectos da vida em Canela, entende que o hotel foi idealizado justamente para ser um cassino, e explica seu ponto de vista.
— Minha opinião é bem pessoal. Quem conhece bem o hotel, sabe que se derrubasse umas divisórias dali, ficaria um salão de cassino perfeito. Imagina, além da estrutura interna, o hotel tinha tudo do melhor, e ainda com um aeroporto ao lado — justifica.
A liberação dos chamados 'jogos de azar' ganha coro nos bastidores do governo do presidente Jair Bolsonaro. Entusiastas do setor dizem que poder-se-ia arrecadar R$ 21 bilhões por ano, com a iniciativa.
Se o Laje de Pedra falasse
Se o Laje de Pedra fosse uma pessoa, teria sido imortalizado pelo cinema, ou pelo menos teria concedido entrevistas reveladoras. Há muitas lendas, mas muitas cenas reais, com destaque até internacional, que percorreram aqueles longos corredores. Tem o caso de um militar, que ocupava alto posto do governo federal, lá pelos idos anos 1970 que teria bebido umas a mais e acabou dormindo na banheira do principal quarto, e sem querer deixou a torneira aberta, inundando corredores. Mas ninguém sabe se é mesmo verdade.
Ou ainda, um certo casamento de gente fina e sofisticada da sociedade, que arrancou, de um lado suspiros pela emocionante cerimônia, mas que, alta madrugada teria chocado os mais pudicos, com certos objetos de prazer sexual esquecidos em um dos quartos. Mas se é mesmo verdade ou lenda, ninguém confirma.
O certo é que tamanho requinte acabava sempre por trazer novas luzes não só ao turismo de Canela, mas da região.
— Não dá para dissociar o Laje de Pedra do turismo de Canela, porque sempre acolheu eventos diversos. Desde os festivais de malhas, que traziam um público diferenciado, ou ainda a Festa da Música, até o evento dos presidentes do Mercosul, em 1992, que mostrou como Canela poderia receber um encontro tão importante — explica Margarida Weber, 66, por três mandatos secretária de Turismo de Canela.
Segundo consta no site oficial do hotel, que ainda está no ar, "em fevereiro de 1992, o Hotel foi palco da assinatura do Tratado do Mercosul, recebendo os quatro presidentes dos países membros: Fernando Collor de Melo (Brasil), Carlos Menem (Argentina), André Rodriguez (Paraguai), Alberto Lacalle (Uruguai) e o Ministro de Relações Exteriores Chileno, Enrique Silva Cimma".
Na mesma nota, consta ainda o motivo pelo qual o Laje de Pedra teria sido escolhido como sede do encontro:
"Dentre as opções de locais na Serra gaúcha, o Laje de Pedra foi o escolhido para sediar o evento depois de uma conversa entre a Diretora Operacional do Hotel Maria Thereza Druck Bastide e Leda Collor, mãe do Presidente da República, que se conheciam através de amizade comum. Leda soube então sobre os diferenciais do empreendimento, o único com 28 mil metros quadrados de área construída e localização privilegiada que facilitaria a segurança do entorno. Além disso, contava com duas suítes presidenciais e outras acomodações que poderiam ser adaptadas facilmente para esta finalidade. A conversa foi decisiva e no mesmo dia o Laje de Pedra foi o eleito do Presidente".
Um dos anônimos que esteve no encontro, à trabalho, pela prefeitura de Canela, o pesquisador Pedro Oliveira, ainda guarda o crachá que precisou utilizar durante todo o encontro.
— Na época eu trabalhava na secretaria de Turismo e recebi um crachá fornecido pela Polícia Federal para poder estar no hotel. Inclusive, nesse encontro, me rendeu uma viagem para a Antártida, que acabei indo em julho do mesmo ano, a convite do presidente Collor. Mas isso já é uma outra história para um outro dia — desconversa Oliveira.
Por aqueles corredores, além da vida privada dos hóspedes, que suscita sempre curiosidade seja em que hotel for, mais interesse há por se tratar do Laje de Pedra. O hotel acolhia desde artistas como Roberto Carlos, que chegava de jatinho no aeroporto para cantar no hotel, até encontros de motociclistas de grupos como o Cavaleiros do Asfalto, que chegaram a reunir 2 mil amantes das duas rodas, em 1996. Haverá sempre muita história imortalizada no Laje.
— Hoje vivemos esse sentimento de tristeza profunda, porque o Laje está fechado. Mas, ao mesmo tempo, não acredito que ele vá permanecer fechado — defende Margarida Weber, que acaba por expor o sentimento que é também de muitos canelenses.
Neblina e 'apfelstrudel'*
Jornalista e integrante da redação do Pioneiro desde 1993, tive a oportunidade de morar em Canela para atuar como correspondente do jornal de 1998 a 2000. Era uma época gloriosa de investimentos em Cultura na Região das Hortênsias e imagino que muito dos frutos colhidos pela atividade turística até pouco tempo são resultantes desse foco.
Entre os eventos mais queridos, tenho o Festival Internacional de Bonecos, que ocupava diferentes palcos pela cidade. O 'Laje', cuja notícia do fechamento é uma lástima agora, era um desses locais que acolhiam a arte bonequeira do mundo todo, em um confortável auditório. Durante os quatro dias de intensa programação, nos deslocávamos de um a outro teatro, em vans disponibilizadas pelos organizadores.
A chegada no Laje de Pedra era sempre impactante pela amplidão dos corredores, lembrando a atmosfera de clássicos como O ano passado em Marienbad, com um silêncio que só era quebrado nas festas realizadas na boate do hotel, confraternização de artistas e jornalistas de toda a parte. Foi num desses festivos momentos, em setembro de 1999, que anunciei aos amigos a futura chegada de minha primeira filha, Tábata, que nasceu em maio de 2000.
Além da estrutura, o Laje de Pedra se distinguia pela localização, com vista para o Vale do Quilombo, e bosques lindíssimos de araucárias. O condomínio, construído na mesma área, reservava doces encontros com Nídia Guimarães, viúva do escritor Josué Guimarães, personalidade sempre disposta a compartilhar, generosamente, suas vivências pelo mundo, na casa aberta à intelectualidade daquele tempo.
Anos depois, soube que o hotel desacelerava, e havia a expectativa de se transformar em Cassino, caso a legislação em trâmite permitisse o retorno desse tipo de empreendimento. Nesse período, também vi encolherem, significativamente, os eventos culturais, e percebi certa crise de identidade na cidade que se reconhece como "Paixão Natural", ao apostar em investimentos privados que, muitas vezes, se distanciam de suas maiores belezas para aderir ao temático-fake, a despeito do que é autêntico e fértil na sua paisagem natural e cultural. Além disso, as fachadas de hotéis memoráveis como o Continental foram ganhando nomes diversos, com a chegada de grandes redes.
Imagino que o declínio do Laje faça parte de um contexto complexo de crises econômicas, mas como uma quase senhora, 20 anos depois dessas vivências, diria que o belvedere para o Quilombo, em uma tranquila e nebulosa tarde que, na memória, tem cheiro de apfelstrudel, diz mais sobre Canela do que qualquer tentativa de inserção no imaginário da Disney. O desejo é de que possa ser dado o melhor destino a esse patrimônio regional e que, pós-pandemia, estejamos mais sensíveis à importância da cultura e de outros bens intangíveis.
* Texto escrito por Alessandra Rech, jornalista, escritora e professora da UCS