Marina Colasanti é mesmo incansável. Aos 82 anos, mantém uma agenda regular de participação em feiras literárias e bate-papos, acabou de presentear o público com a coletânea de poesias Mais Longa Vida, lançada semana passada pela Editora Record, e já trabalha num projeto que deve chegar às livrarias em agosto, uma biografia da tia-avó Gabriella Bezansoni Lage.
Na última quarta-feira (4), horas antes de palestrar em Caxias do Sul, na abertura do seminário Entre a Espada e a Rosa, evento alusivo ao Dia Internacional da Mulher promovido pelo Instituto Quindim, a autora recebeu a reportagem do Pioneiro para uma conversa que abordou de literatura a questões de gênero. Com uma trajetória recheada de prêmios e um histórico de luta no movimento feminista, tendo integrado o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Marina defendeu a urgência de creches e a importância da educação sexual nas escolas. Ela também acredita que os livros infantis precisam abordar todos os assuntos, sem medo. Confira na entrevista.
Pioneiro: O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo. Como enfrentar essa realidade?
Marina Colasanti: Educação. É importante discutir as questões de gênero nas escolas, contrariamente ao que tem sido apregoado por esse governo. Se não discutirmos as questões de gênero na escola, as crianças correm o risco de crescer com o mesmo exemplo que tiveram até então, de famílias organizadas ao redor do machismo. A leitura também é fundamental, porque ela melhora as pessoas que estão desejosas de serem melhores.
Além do combate à violência, quais as pautas mais urgentes na luta pela igualdade de gênero? São dois pontos. Um deles está sendo praticamente desprezado: a urgência de creches. As mulheres pobres não podem trabalhar porque não há onde deixar as crianças. O Brasil precisa urgentemente de creches para libertar as mães, as avós, as tias. O segundo item é a presença de mais mulheres na política, porque é na política que se elaboram as leis, que se fazem os projetos.
Temos visto, no Brasil, uma espécie de caça às bruxas contra artistas ou autores que abordam questões de gênero. Como a senhora avalia o momento?
Temos que convocar resistência. Sabemos que há grupos contratados para mandar, com robôs, milhares de mensagens que nem sempre correspondem à verdade. A defesa da família brasileira é muito boa, mas teria que abranger qualquer família, ou então é mais uma fake notícia. Porque a família não é só a tradicional: papai, mamãe, seus filhinhos e avós. Isso está longe de ser a realidade. A família brasileira se compõe enormemente apenas de mulheres, porque os homens engravidam as meninas e se mandam. E são as mulheres que se encarregam de criar essas crianças. Por isso, qualquer defesa da família brasileira teria que incluir educação sexual, para evitar gravidez na adolescência, e a discussão sobre gênero. Os homens têm que se responsabilizar pelos filhos que fazem.
A senhora costuma dizer que “toda criança é uma caçadora de palavras”. Existe algum assunto ou palavra que as crianças não possam encontrar nos livros?
Eu acho que não. Perceba que tentam eliminar a palavra “morte” dos livros infantis e da vida das crianças. Elas não vão a enterros, não veem pessoas morrendo. “Vovô virou estrelinha”. Não! Vovô não virou estrelinha, “vovô morreu, voltou à natureza”. Adocica-se a morte e isso só aumenta o medo das crianças, porque elas sabem que é uma dupla verdade. As crianças têm muito medo de serem abandonadas, de que os pais morram. E elas sabem que são incapazes de sobreviver sozinhas. Então, o melhor a se fazer é conversar sobre a morte, conversar sobre tudo.
Muitos pais têm dúvidas na hora de escolher livros infantis. Como acertar na escolha? Nos Estados Unidos, existem prateleiras especiais de livros infantis premiados, que são uma garantia de qualidade. No Brasil, o prêmio não é posto na capa; quando muito, dentro do livro. Os prêmios deveriam ser colocados na capa, como orientação aos pais. Então, uma dica para os pais é procurar os nomes mais conhecidos: Ana Maria Machado, Roger Mello, Ziraldo, André Neves...
São mais de cinco décadas de carreira e 70 livros publicados. É possível eleger o mais importante?
Os livros especiais são os que abriram portas para novos gêneros. Ou seja: meu primeiro livro, Eu Sozinha, por ter me levado a ser escritora; o primeiro de contos de fadas, Uma Ideia Toda Azul; o primeiro de poesia, Rota de Colisão; e o primeiro de minicontos, Zooilógico. Cada um deles abriu a porta para um novo departamento criativo em que sentei acampamento.
Trabalha em algum novo projeto?
Sim, vai ser publicado em agosto. É a biografia da minha tia-avó, Gabriella Besanzoni Lage, cantora lírica, a quem eu devo estar hoje no Brasil e ser escritora em língua portuguesa.
A senhora já disse em entrevistas que “achava que morreria cedo”. O que significa chegar aos 82 anos escrevendo, participando de feiras do livro, ministrando palestras?
Sempre achei que fosse morrer mais cedo. Estou de malas feitas embaixo da cama. Não tenho medo, sempre convivi com a morte. Na minha família, não há casos de longevidade. Somos muitos bem educados: nos retiramos na hora certa. Enquanto estiver viva, estarei trabalhando. Quando não estiver mais trabalhando, é sinal de que, de uma forma ou de outra, eu morri.