Há dilemas que atravessam gerações. Muitos deles preocupam-se com a vida depois da morte. Para onde iremos? Existe vida depois da morte? Acessaremos todos a eternidade? E se a vida é contínua, porque preocupar-se tanto com esse átimo de tempo, entre o desabrochar da semente e a seiva seca de finitude? Com um olho cansado no passado, outro ansioso no futuro, a humanidade perde-se nesse presente, que é o tempo onde tudo acontece – ou deveria acontecer. Viver é relacionar-se, coexistir. A internet interliga nações, paixões, taras e psicoses. Mas há um ruído nessa linha. Nunca estivemos tão conectados, mas, em contraposição, o diálogo tem sido alvejado com fúria, como se discordar fosse pecado destinado à morte de cruz.
Atualmente, mais vale estabelecer argumentos, nem que seja por força, pressão e violência, do que equalizar discursos. Somos a geração que ergue muros, separando as pessoas entre bons e maus, em vez de estender pontes que aproximam antagônicos. Em algum momento da história, esquecemos de que a jornada é comum, migrando de cá pra lá, mesmo que por caminhos diferentes. Dentre tantas incertezas, que o diálogo nosso de cada dia receba desde a orientação de Cristo que se dizia ser “o caminho, a verdade e a vida”, e por isso deveriam todos segui-lo, até a convicção debochada do poeta José Régio, que assim finaliza o poema Cântico Negro: “Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!”.
Nessa jornada por estes caminhos difusos, homens e mulheres parecem conformar-se em viver trancafiados em si mesmos. Para muito além dos discursos excludentes das extremadas direita e esquerda, a vida em comunidade padece. Há um apreço cada dia maior pela vida Netflix e fast food. Ou seja, a vida das coisas do jeito que eu quero, na hora em que eu quiser, para assistir ou comer onde eu bem entender. Há cada dia mais formas de nos comunicarmos, mas o diálogo, que não é apenas uma conversa, e sim, mergulhar em pensamentos, pontos de vista, reflexões, e dali construir, juntos, entendimentos, conceitos e posturas, se liquefaz antes que a mensagem do Whatsapp seja lida e apagada pelo receptor.
Caminhos possíveis
Nem tudo é descaminho nessa jornada. Há um modelo chamado Justiça Restaurativa que tem construído uma nova perspectiva na resolução de conflitos. “Justiça restaurativa é uma técnica de solução de conflito e violência que se orienta pela criatividade e sensibilidade a partir da escuta dos ofensores e das vítimas. Esse é o conceito institucional, adotado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e a sua prática apresenta iniciativas cada vez mais diversificadas e já apresentou muitos resultados positivos. Neste estudo, verificamos como esse conceito dá um novo direcionamento à maneira de compreender, viver e aplicar o direito penal”, categoriza a doutora em Direito Pena, Ila Barbosa Bittencourt, professora do Departamento de Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
Um dos teóricos mais importantes, o norte-americano Howard Zehr, professor do curso de graduação em Transformação de Conflitos da Eastern Mennonite University, na Virginia, defende: “A Justiça Restaurativa não é um mapa, mas seus princípios podem ser vistos como uma bússola que aponta na direção desejada. No mínimo a Justiça Restaurativa é um convite ao diálogo e à experimentação”. Esse convite ao diálogo tem sido acolhido por instituições de Caxias do Sul, como a Anjos Voluntários. Um dos braços de atuação da Justiça Restaurativa é o Círculo de Construção de Paz. De junho a outubro, a instituição realizou 59 círculos com a presença de 200 pessoas, com 1.142 participações ao todo.
– A proposta que a Anjos vem construindo, como organização da sociedade civil, é que os processos todos sejam baseados na Justiça Restaurativa. Todos os funcionários desta casa são facilitadores, porque todos fizeram a formação. Então, a gente estruturou um plano aqui na casa, para que todos conhecessem a metodologia, desde o pessoal da cozinha, da limpeza e área administrativa. Naturalmente, com essa escuta, todos tiveram um entendimento maior também uns sobre os outros. Por isso, a instituição ganhou um relacionamento melhor entre a equipe – justifica a pedagoga Katiane Boschetti da Silveira, 32 anos, instrutora e facilitadora de Círculos de Construção de Paz.
Construir pontes para as futuras gerações
O professor de história e educador social da Anjos Voluntários, Ismael Carlos Cruz Feijó, 31, tem acompanhado as crianças e os jovens que participam dessa fase inicial de implantação dos círculos na entidade. Diz ter notado uma grande diferença de relacionamento entre eles. Deixaram de lado a indiferença e o individualismo e passaram a preocupar-se com o colega e a interpretar sentimentos.
– Pra mim a empatia é uma das palavras-chave nos Círculos de Paz. Eles exercitam bastante a empatia, que é colocar-se no lugar do outro. Percebem o que o colega está passando e por saberem que há sigilo entre os participantes, eles se sentem mais à vontade para falar. Tem uns que preferem não falar, mas escutam atentos. E muitos se emocionam porque ouviram a história do colega. E ao final, procuram o colega, abraçam e falam: “conta comigo, se precisar de algo vem falar comigo” – revela Feijó.
Essa esperança contida no relato do professor, que é intrínseca ao ser humano, tem mais peso quando esses jovens que estão sendo alvos dessa filosofia chamada Justiça Restaurativa, começam a replicar o que aprendem.
– Na escola, já aconteceram problemas, e por meio do meu conhecimento, tive a chance de oportunizar o diálogo, e ajudar a resolver aquela situação – conta Janaína de Jesus Ávila, 13, que estuda na Escola Municipal Nova Esperança.
É uma jornada ainda longa para essa gurizada, mas a instrumentalização que tem recebido na Anjos faz com que eles sejam estimulados a pensar em situações que muitos adultos já enterraram.
– Num dia, em um círculo, falamos sobre aproveitarmos melhor os nossos dias, e então parei pra pensar. Acho até meio bobo o que vou dizer, mas esse dia de hoje é único na minha vida. Porque não vai mais se repetir. E acabou que já passaram muitos dias, e não aproveitei quase nada. Pensei que tenho de aproveitar mais os meus dias – diz Vitória Walltrick, 13, também aluna da Nova Esperança.
Mais do que amigos, irmãos
Esse convívio que tem ocorrido entre os jovens da Anjos Voluntários revela que ao conhecermos mais sobre a vida do outro, nos conectamos mais e é desta forma que amigos tornam-se irmãos.
– Trabalhamos muito a empatia na nossa turma, porque visamos a nossa igualdade. Somos mais do que amigos, somos irmãos – reconhece Sidnei Luiz Weber Filho, 15, aluno da Escola Municipal Rosário de São Francisco, que passou a focar mais no futuro, em que pensa estudar Engenharia Mecânica.
Thaís Cristiana Christ Lima, 15, aluna da Escola Alexandre Zattera, também projeta sua carreira, equilibrando sonho com projeto de vida.
– Eu quero ser estilista e DJ. Vou pagar a faculdade de moda trabalhando como DJ.
Quanto aos Círculos de Paz, Thaís defende que toda a cidade deveria se envolver e participar desse processo.
– Um Círculo de Paz para a cidade toda faria uma grande diferença, porque os moradores veriam o quanto somos iguais. E também aprender a ter respeito com as outras pessoas, e respeitar as diferenças entre elas. Porque muitas vezes, a cidade inteira julga quem vêm de fora, como os imigrantes. E ninguém sabe como têm sido difícil para eles estarem aqui.
Confira abaixo galeria de fotos com as crianças e adolescentes do projeto Anjos Voluntários