Súbito, desaprendi. Sabemos que o aprendizado de uma atividade se dá primordialmente com a prática constante, com o acumular da experiência, com o sedimentar do proceder. Apossamo-nos do conhecimento e passamos a ter segurança em relação a ele; é assim que se dá. O que não tem explicação, ao menos, não de forma tão instantânea, é o súbito desaprender, a puxada de tapete da memória; o voo ingrato e sem aviso, para longe, da habilidade até então tida como definitivamente apreendida e integrante perene de nossa constituição pessoal, psíquica e prática. Ora, como assim?
O fenômeno se deu comigo dia desses, semanas atrás, ao buscar minha esposa no trabalho, a noite de sexta-feira já assentada nas horas, o frio de fim de inverno ainda presente, a serração começando a baixar seu manto de invisibilidade sobre as poucas quadras que ainda nos separavam do acolhimento da sala de casa. No meio do caminho, no entanto, havia uma pedra - esta, nada poética, nada inspiradora -, transmudada em um paralelepípedo desritmado de seus pares, a ponta agulhada empinada para cima, à espreita do primeiro pneu desavisado que cometesse a imprudência de cruzar sobre ela. Esse desavisado pneu foi justamente o do lado direito dianteiro de meu carro: bunct! A ressonância do estrondo logo denunciou o tamanho do estrago: pneu furado, obrigando-me a estacionar cem metros adiante. “Problema zero”, sentenciei, apaziguando a esposa. “Troco em menos de dez minutos”, já abrindo o porta-malas, sacando para fora o estepe, posicionando o macaco e as ferramentas.
Só que, não! No meio da noite, sob a neblina, desaprendi a trocar pneu, após mais de 30 anos amigado da tarefa, desde a primeira carteira de motorista. O macaco funcionou errado, mal erguendo a roda poucos centímetros do chão (estava mal posicionado); as porcas não frouxavam (eu as estava torcendo para o lado errado, afixando-as ainda mais); no celular, esqueci a localização da lanterna, para que a esposa me auxiliasse, iluminando minhas novas inaptidões. Quando da segunda oferta de ajuda, vinda de motorista gentil, engoli o suor da testa e aceitei, depondo as armas (macaco, chave-de-roda, estepe, celular e orgulho). O rapaz, motorista de Uber, solícito, fez em cinco minutos o que eu passei a vida sabendo fazer. Chegamos em casa sãos e salvos: pneu trocado e eu engraxado e sem graça, pensando com meus botões: “o que houve comigo?”. Ainda não sei. O que detectei é que nem sempre estamos preparados para enfrentar as surpresas que somos capazes de ofertar para nós mesmos. A vida é mesmo uma graxa!