No Almanaque do último final de semana (17 e 18 de agosto) foi abordado "Quem são e o que pensam os conservadores caxienses". Nesta edição, será revelado o pensamento de quem tem uma visão mais progressista e à esquerda.
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Vinte e nove de outubro de 2018 é o dia que ainda não terminou. Nos primeiros minutos da madrugada, a informação oficial de que Jair Messias Bolsonaro (PSL) havia se tornado o 38º presidente do Brasil desencadeou choro e desespero na casa das empresárias Lídia Ribeiro e Mariana de Alencastro. O casal de lésbicas e um grupo de amigos acompanhavam com apreensão, na sala do apartamento, voto a voto o militar da reserva superar a preferência do eleitorado em detrimento do representante da esquerda, Fernando Haddad (PT).
— Quando finalizou a apuração, foi uma choradeira total e bateu um desespero muito grande na galera — revela Lídia, 37 anos, ainda emocionada, lembrando que haviam pelo menos 15 pessoas na sua casa, que se entreolhavam e se perguntavam: "Será que vamos ter de ir embora do país?".
A realidade imita a ficção?
Nas paredes do apartamento, adornado por cartazes de filmes e obras de arte que são um manifesto a favor do movimento LGBT. Nas estantes, livros sobre feminismo são facilmente encontrados em meio a obras críticas sobre períodos opressores como o nazismo. Entre os livros, O conto de aia (escrito por Margaret Atwood), que elas julgam ser fundamental para entender o que estamos a viver e o que ainda o povo brasileiro deverá enfrentar.
A sinopse brevíssima da obra dá conta de revelar como é o futuro de uma república onde não existem mais jornais, revistas, livros e filmes, porque tudo fora queimado. Um Estado teocrático, totalitário em que as mulheres são as vítimas preferenciais e não têm mais direitos. A protagonista, Offred, pertence à categoria de aia, o que significa existir unicamente para procriar.
— No momento em que eu lia a entrevista com a Nadja (Nadja Rippel, entrevistada para a reportagem sobre Conservadorismo, na edição 870 do Almanaque) eu fiquei em choque. Esse discurso dela apareceu muito durante a eleição, mas fiquei em choque porque eu já devo ter esbarrado com ela no mercado, afinal Caxias não é uma cidade tão grande assim. A gente lê uma coisa dessas nas redes sociais, mas tu nunca imagina que uma pessoa próxima fala tudo aquilo. Eu pensava: "Deus, isso não é real!" — desabafa Lídia.
Conversão à esquerda
A microempresária e DJ Mariana, confessa que foi convertida à esquerda quando conheceu Lídia, cuja família toda é de esquerda.
— Eu era conservadora, só conhecia o pensamento da direita. Mas quando a Lídia me explicou sobre o pensamento progressista vi que eu me identificava mais. Minha família é o exemplo da ignorância. Meu pai idolatra o Bolsonaro, ao mesmo tempo que ele gosta de ajudar as pessoas. Ele tem um bom coração, mas, enfim, é de direita, não dá pra entender — revela Mariana, 26, explicando que seus pais não acompanham as notícias através da imprensa, mas se informam pelos grupos do WhatsApp.
"O ódio saiu do armário"
O medo, dizem elas, não é mais com relação ao pensamento bolsonarista, mas da consequência dessas ideias disparadas pelo presidente e endossadas por quem apoia Bolsonaro.
— O ódio saiu do armário — brinca Mariana, sem perder a seriedade.
— Um exemplo simples, do cotidiano. Outro dia fui comprar um tapete em uma loja aqui do lado, pra arrumar a minha casa, deixar ela do jeito que eu gosto. Mas pensei: "Quanto tempo eu vou ficar aqui ainda?". Será que é exagero mesmo pensar que talvez eu tenha de ir embora do país? — questiona Lídia.
Na sequência, Mariana olha para Lídia e lembra de um fato que havia acontecido na manhã da última terça-feira, dia 20, quando concederam a entrevista ao Pioneiro:
— Não sei se tu percebeu, mas na hora em que estávamos voltando da academia, e nos despedimos com um beijo, na esquina aqui de casa. Viu que passou um carro, e um cara colocou a cabeça para fora da janela e gritou. Não consegui entender bem o que ele dizia, mas com certeza foi algo de ódio. É esse tipo de coisa que eu não via mais acontecer.
Como educar um hétero
Lídia é sócia-proprietária da Level Cult e do Doca Beer Garden. A Level é uma casa noturna que nasceu para atender ao público LGBT, há sete anos, e onde Mariana é a DJ residente. A empresa gera 10 empregos diretos e mais de 50 indiretos. Há cerca de um ano e meio a casa vem recebendo um número maior de heterossexuais, sobretudo homens.
— Houve uma invasão de héteros, porque muitas casas noturnas fecharam e coincidiu com a entrada em cena do Bolsonaro. Chamamos invasão porque começou a incomodar. Começamos a ter problemas sérios de assédio, de homens hétero pra cima das mulheres _ explica Lídia.
— Por exemplo, se estávamos dançando juntas na pista, eu e a Mari, vinha um hétero e dizia: "Ah, tá falando um homem aí no meio" — complementa Mariana.
— Ou de passar a mão, tentar agarrar e beijar à força. E com justificativas do tipo: "Ah, eu sei que tu quer isso mesmo...". A gente começou a fazer campanhas, e hoje é tolerância zero. Quem passa do limite é colocado para fora pelos seguranças — justifica Lídia.
Bolsonarismo gera medo
Lídia postou nas redes sociais um "textão", logo após o resultado da eleição que daria início não só a Era bolsonarista, mas ao que ela chama também de "Era do medo". A seguir, um trecho do seu desabafo:
Eu tenho medo de me separarem da Mariana e meus familiares, de tirarem meus amigos e machucá-los.
Eu tenho medo de ter que viver escondida por causa de minhas escolhas e orientações e ser quem não sou, tenho medo de ouvir minha vizinha apanhando e ter que fingir costume com seu marido violento dando risada sem graça.
Tenho medo pelos meus amigos soropositivos que estão em pânico porque seus remédios podem não ser mais distribuídos de forma gratuita.
Tenho medo de ver os clientes da Level Cult apanhar na rua ou de terem que se vestir de forma padrão sem usar suas Melissas, perucas e maquiagens, de não poder ver mais os "viado tudo" coreografando suas divas preferidas, ver eles fingirem ser másculos, ou forçar suas vozes para parecerem mais grossa, tipo: "fala que nem homem".
Tenho medo de que apaguem o grafite que o KINO 23 fez lá nas paredes da Level onde dois homens se beijam e uma mulher grita: BASTA.
Tenho medo de ter que esconder meus quadros de Rafael Dambros e quebrarem os quadros das mulheres que temos lá na Alouca Café.
De não poder mais receber as gurias da Marcha Mundial das Mulheres - Caxias do Sul para bate-papo, de ter que trocar os nomes dos drinks de nosso cardápio.
Tenho medo de ter que largar tudo e ir embora para um lugar diferente, sem meus amigos e familiares.
Tenho medo por você que não tem a mínima noção do que está acontecendo porque acha que é privilegiado e pensa que não vai sofrer por nada disso.
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