Ilustradora, mediadora de leitura, livreira, curadora. Não é fácil resumir os incontáveis ofícios da portuguesa Mafalda Milhões, atração internacional do Instituto de Leitura Quindim (ILQ) durante o fim de semana. Entre as inúmeras atividades de promoção e sensibilização à leitura, destaque para o lançamento da edição brasileira de Uma Biblioteca é uma casa onde cabe toda a gente, publicado pela editora Abacatte – um instigante manifesto pela democratização do acesso às casas de leitura.
Em sua primeira passagem pelo Brasil, Mafalda conversou com o Sete Dias sobre as inspirações de seu trabalho, a importância da ilustração para a literatura, a crise no mercado editorial e ainda discorreu sobre a necessidade de ampliar o contato entre os autores dos países de língua portuguesa. Confira:
Sete Dias: No livro lançado sábado, no Quindim, você é apresentada como “ilustradora de causas”. Que causas são essas?
Mafalda Milhões: Não sei se há uma resposta, mas acho que quando as pessoas falam de mim e das causas que defendo é porque eu sou um bocado inquieta. Tudo que faço tem um fundamento, um propósito social. Acho que, de alguma forma, tenho consciência de que a arte tenta tornar a sociedade melhor. Não escrevemos um conto ou ilustramos uma história para que o mundo fique pior. Talvez essa seja a minha maior causa. Gostaria que o mundo fosse mais inteligente, que as pessoas se educassem mais umas com as outras, que tirassem mais proveito das suas relações.
O título do teu livro traz uma provocação: uma biblioteca é um lugar que cabe toda gente. Gostaria que você comentasse.
Em Portugal, lembro de ter conhecido bibliotecas escolares onde os livros ficavam trancados em armários. Todas as bibliotecas que conheci, de certa forma, tinham coisas inacessíveis. Eram locais preconceituosos, onde nem toda gente cabia, como os ciganos, os mendigos, as crianças desacompanhadas. E sempre com uma pitada de repressão: não se pode fazer barulho na biblioteca, não se pode desarrumar os livros, obras raras só podem ser consultadas sob vigia...
Na literatura, muitas vezes a ilustração é colocada em segundo plano, como complementar ao texto. Como você avalia esse cenário?
Talvez a ilustração seja outra linguagem da literatura, desdobrando-se em imensas linguagens de acordo com os códigos que cada ilustrador emite. A ilustração permite várias perspectivas da mesma palavra. É como se fosse uma espécie de caleidoscópio: cada vez que você olha, fica diferente. Talvez esse seja o papel: multiplicar, comunicar.
Quais as alternativas para o momento de crise no mercado editorial, com fechamento de livrarias e editoras?
Se nós pensarmos na infância como um início, sem preconceito com os livros ilustrados, com as narrativas simples, nós podemos incluir todas as pessoas e abrir caminhos. É o que nos resta no meio dessa loucura toda, porque a crise não é só no Brasil. Em Portugal também fecharam muitas livrarias. Acredito que, politicamente, não é reconhecido o direito das pessoas pensarem pela própria cabeça. E essa teimosia em continuar existindo, como o Quindim faz por aqui, é uma prova de resistência.
Como você avalia o desafio de manter livrarias e centros culturais fora dos grandes eixos?
O desafio é grande. Por todos os lados existem pessoas que se destacam e gritam pela leitura, pela paz, pela educação. O que acontece aqui, com o Quindim, é muito parecido com o que acontece conosco, em Portugal: uma pessoa que se dispõe a abrir e fechar a porta. E que coloca todo seu investimento pessoal, psíquico e financeiro para manter o projeto em pé. Mas acredito que esses projetos deveriam ter apoio governamental. Por que os governos não multiplicam esses espaços? E não estou falando de subsidiar, mas de estabelecer rotinas, colocar as pessoas em contato. A descentralização é importantíssima.
Na sua opinião, falta integração entre os autores dos países de língua portuguesa?
Eu acho que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa deveria ser mais ousada nos contatos. O problema não é fazermos as viagens, mas sabermos mais sobre a cultura dos outros países. Deixar-se influenciar mais. É preciso promover os autores nos manuais escolares. Estudar sobre Fernando Pessoa no Brasil, sobre Machado de Assis e Monteiro Lobato em Portugal. E os governos também poderiam derrubar barreiras, deixar mais acessível a viagem dos livros entre os países. Hoje é caríssimo. Estou falando de alfândegas, de transporte. Esses entraves não ajudam.
Em sua primeira passagem pelo Brasil, como você percebe o momento político nacional, com discurso de austeridade e possibilidade de cortes de recursos em educação e cultura?
De alguma maneira, passamos algo semelhante no último governo de Portugal. Ficamos um período sem Ministério da Cultura. Voltou só agora, com o novo governo. Acompanhando o que acontece no Brasil, me parece que há um desequilíbrio emocional que se manifesta na falta de respeito pelo ser humano. Se eu lhe tapo os olhos, as orelhas e a boca, estou lhe tirando o direito de viver. Esses cortes parecem representar justamente isso. Acontece que, por mais que tapem olhos, ouvidos e boca, o ser humano ainda pode pensar. Os criadores não vão deixar de criar. A natureza não vai parar de se reinventar. É humanamente impossível acabar com a cultura. Podem tentar de tudo, mas é impossível.