Em uma tarde de um domingo qualquer, uma mulher repousa sobre uma mesa instalada na área externa do tradicional mercado Ver-O-Peso, em Belém (PA). Ela está completamente nua, e as vísceras de animais que estão sobre seu corpo atraem as dezenas de abutres que rondam o centro comercial em busca de comida. Forte, a cena também chama a atenção das centenas de pessoas que circulam pelo lugar, causando reações que vão da ojeriza à pena.
Estamos falando de Quando Todos Calam, uma das principais referências do trabalho de Berna Reale, artista paraense de 52 anos que esteve em Caxias do Sul na última quarta-feira para a aula inaugural dos cursos de Artes Visuais da UCS. Realizada em 2009, a performance quis chamar a atenção para a questão da exposição, de como estamos expostos diariamente, nas mais diversas situações.
– Estamos servindo aos abutres diariamente. Pensei nesse trabalho para refletir sobre como você sai de sua casa e não sabe se vai voltar. A sua vida vale qualquer coisa – reflete, em entrevista ao Pioneiro.
Uma das artistas contemporâneas brasileiras mais aclamadas no Brasil e no Exterior atualmente, Berna tem a inquietude como mola propulsora para tratar de temas espinhosos como violência, corrupção e poder. Em 2013, vestindo blazer azul e colar de pérolas, circulou pelas ruas de um dos bairros mais violentos da periferia de Belém a bordo de uma biga dourada puxada por quatro porcos. Houve quem fizesse referência à ex-presidente Dilma Rousseff, embora ela diga a intenção tenha sido mostrar os políticos em geral:
– Quis fala sobre o poder que ela (Dilma) representava. Pra mim, o Congresso Nacional era aquilo. Nosso Parlamento é aquilo, um monte de porco.
Berna acrescenta que a performance ganhou o título de Soledade por ser o nome da rua e por fazer alusão a sentimentos como solidão e abandono. O lugar também é emblemático. Ao solicitar apoio da polícia para escoltar a equipe durante a realização do trabalho, diz ter ouvido do comando da corporação que aquele se tratava de uma "boca" de tráfico:
– Me disseram: "Nessa (rua) a gente não entra. Você tem que negociar com o traficante". Fui lá, conversei e me deixaram fazer.
Outro detalhe: além de artista, Berna é perita criminal, profissão para a qual foi atraída após uma de suas primeiras performances: uma instalação no Mercado Municipal de Carnes em que exibiu fotografias de vísceras de cadáveres humanos.
– Pedi autorização e fui para dentro do IML. Geralmente os corpos chegam de noite e só vão fazer necropsia de manhã. Então eu ia bem cedo, tipo 4h, 5h da manhã para fotografar. Foi lá que eu comecei a me interessar por essa prática da criminalidade. Foi quando surgiu o concurso para perita.
Confira trechos da conversa com o Pioneiro:
Artista e perita
– Foi na perícia que senti vontade de fazer performance. Eu queria muito estar presente. Eu estava dentro da Academia de Polícia e um dia cheguei antes para a aula. Era umas 17h30min, e eu vi um soldado pagando uma punição. Ele estava fazendo apoio e tinha uns alunos rindo em volta dele. Aquilo mexeu comigo de uma maneira tão forte e eu pensei: "É isso que eu quero fazer. Quero fazer arte ao vivo. Quero fazer arte em que eu esteja no trabalho." E em seguida pensei naquele trabalho do Ver-O-Peso (Quando Todos Calam, 2009), de como a gente está exposto, de como você sai de sua casa e não sabe se vai voltar. A sua vida vale qualquer coisa.
Interesse pela violência
– Estou sempre representando os dois lados, porque os dois lados chamam a atenção. Não só a vítima, mas também o cara que tem o poder, o cara que censura. Ele também é um elemento importante. Às vezes eu me visto do papel dele para provocar uma reflexão. E, às vezes, eu me visto do papel da vítima, como aquela mulher que empurra os ossos dos cadáveres (Ordinário, 2013). Eu estou ali como aquela pessoa, aquela mãe, aquela mulher, aquela filha que empurra aqueles ossos. Ali eu estou como vítima de uma ação de uma sociedade. Quando eu estou em cima de um cavalo vermelho (Palomo, 2012), eu estou como o poder que oprime, que censura.
Banalização da violência
– O grande problema da violência é que ela se tornou íntima. Tu não vês mais a violência como algo estranho a ti. Se criou uma intimidade com a violência. Você não poderia achar comum. Sempre o próximo é o novo. O que aconteceu uma semana atrás deixou de ser novidade, a não ser que seja um caso de repercussão pública. Essa intimidade é que me assusta. Principalmente na América Latina, nos países pobres. A violência é alimentada pelo governo. Quando eu fui mostrar meu trabalho de camisa de força na praia, mostrando que me sinto impotente em relação a isso, um amigo meu perguntou "Berna, tu sabias por que a violência no Brasil e em alguns países da América Latina é quase impossível de ser combatida? Porque ela é alimentada pelo governo. Diferente dos países desenvolvidos, onde o governo combate a violência, no Brasil, e em determinados países da América Latina e da África, ela é alimentada pela corrupção. Ela sustenta a violência. É impossível combater porque o poder de quem governa, que deveria coibir, alimenta." Fiquei arrasada. Eu nunca tinha entendido a corrupção nesse aspecto. Eu lidava com a corrupção só monetária, financeira.
Reação do público
– Quando eu fiz aquele trabalho do Ver-O-Peso, achei que iam me xingar, porque eu não sou uma mulher com estilo de gostosona, a mulher perfeita, bonita. Eu fiquei espantadíssima porque ninguém se tocava pelo fato de eu estar nua. Todo mundo se prendeu na cena que eu criei. O meu corpo virou um elemento cenográfico do trabalho. Um elemento estético. Ele não passou pelo sexual. Ele ultrapassou, deu a volta no sexo e mostra a beleza.
Arte, beleza e conceito
– Sempre digo aos estudantes de arte que estamos vivendo um momento político muito importante e a gente tem que se colocar (se posicionar). Mas quando vocês vão para a rua, vocês têm que decidir se estão indo como artista ou como cidadão. Eu já fui para movimento de rua, em 2013, com aquela grande pressão no Brasil todo. Fui como a Berna, cidadã. Falei para eles: quando vocês forem para rua, se vocês colocarem um cartaz escrito de caneta, numa cartolina, OK. Mas se vocês vão como artista, vocês têm que pensar qual instrumento vocês estão levando. Uma cartolina rabiscada, suja, melada, não me serve. Vocês têm que separar bem. A arte, ao meu ver, está intrinsecamente ligada à estética. Eu gosto do que é bonito. Quando eu fui falar do poder do Estado em 2012, em Palomo, que criticava essa posição de cercear a liberdade de expressão, eu não quis fazer um cavalo pintado de qualquer jeito. Eu queria fazer o cavalo mais lindo do mundo. Então Palomo (esse é o nome do animal e também faz uma referência à pomba da paz, paloma, em espanhol) foi pintado com 38 tubos de tinta. Eu fiz vários testes com ele. Eu queria que ele desfilasse e fosse imponentemente lindo, porque a estética era importante. Eu queria estar de policial, mas eu queria que quando passasse (pelas ruas) todo mundo parasse pra ver, e não fosse mais uma manifestação, não fosse mais um ato de ativismo político e sim um ato também estético. É importante que o artista pense sobre isso.
A arte como antídoto
– A arte, infelizmente, pode muito pouco. Comparado às grandes possibilidades que a gente tem de atingir, a imprensa pode muito mais. Dentro da arte, a música é a que mais pode porque ela alcança um número maior de pessoas. Se tu fores ver as artes visuais, a arte contemporânea, não alcança quase ninguém. Agora com a internet até que alcança mais, mas, mesmo assim, ainda alcança pouco porque o círculo de quem frequenta, de quem lê os códigos da arte é muito restrito, muito elitizado. Recebo muitas críticas por fazer uma arte muito simples, direta. Tenho um amigo que diz que só é óbvio depois que eu fizer. É igual colocar ovo em pé. Eu não me incomodo com isso. Eu não faço arte para quem lê códigos de arte em museu. Eu quero que meu trabalho vá para a rua e atinja as pessoas que não frequentam museu. Tanto que eu não faço performance em museu. Eu mostro o resultado da performance no museu, mas eu não faço performance dentro de espaços para galeria, para museu. Eu respeito quem faz, mas eu não faço. Não é uma coisa que me satisfaça como artista. Gosto de entrar num bairro de periferia, passear com Palomo numa rua aberta, eu gosto da coisa que chega no espectador que nunca foi numa galeria. E também aquele lance: "será que vão me jogar ovo? será que vão gritar comigo?" Essa adrenalina. Ao mesmo tempo que tu tens o direito de entrar na rua, quem está na rua tem o direito de não te querer nela.
Fazer arte fora do eixo Rio-SP
– É difícil porque você não tem apoio financeiro, não tem mercado de arte. O lado fácil é que, como eu nasci lá (Belém-PA), eu conheço a cidade. Eu sei qual rua tem um efeito, qual bairro tem outro. Por exemplo, para mandar um ofício para o secretário de Cultura, eu sei onde eu deixo e sei que vai chegar. Se eu for fazer isso em São Paulo, o cara nunca vai ler.
Futuro do Brasil
– Estou muito pessimista. Olha os nossos candidatos. Eu tenho pavor que esse Bolsonaro ganhe. Eu tenho horror que esse homem seja nosso presidente. Mas também não queria um Lula de volta. Não tem nenhum em quem eu acredite. Só chega a ter possibilidade de ser presidente quem está contaminado pela máquina. O cara honesto que diz "quero ser presidente, vou me candidatar" não vai ter nem 1% dos votos, não vai nem aparecer na televisão. É tão desigual a chance. Esse é o grande problema do Brasil e dos países subdesenvolvidos. As chances não são as mesmas. Enquanto você não der as mesmas chances pro cara ir para a escola, fazer uma universidade, uma especialização, um intercâmbio, você não muda a realidade. O cara que nasceu numa favela, na rua, ou é filho de drogado, de consumo crack, já entra com uma desvantagem tão grande, porque os meios sociais não te dão acesso. Isso é muito triste. Tu já nasce estratificado. Só falta ter casta. Acaba que tem uma estratificação social em que é impossível ultrapassar barreiras. As pessoas não estão preocupadas em discutir isso. Estão preocupadas em ir para a rua e gritar "Coxinha!" e "Mortadela!"