Ele é relativamente jovem, ainda nem emplacou o seleto time dos cinquentões. Um desses caras afáveis, erudito, bom companheiro e aparentemente cheio de vida. Mas, é o primeiro a citar que as aparências enganam. Afinal, antes que fachada, importante é o conteúdo. O que vale é a maquinaria. De nada adianta a gente elogiar a sua excelente forma física, o rosto corado, o corpo sarado. Enfim, um ótimo estado geral. Pura conversa fiada. Não venham confortá-lo, convencendo-o que tem saúde para dar e vender.
Pior que não tem. Claro, segundo a sua rigorosa autocrítica é impossível ser sadio com o montão de sintomas que o assolam diuturnamente. Ninguém reparou nestas brotoejas? Olhem para as minhas olheiras profundas! E ainda ousam duvidar por quantas doenças a "vítima" já passou. Se os amigos não ficaram sabendo, nem da metade, é porque sua índole discreta o faz silenciar, sem sair chorando as pitangas e anunciando seus males aos quatro ventos. Resignado, curte intimamente as suas dores. Tem um remedinho, por favor?...
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A cada pouco, bate em minha casa, mudando o tom da "consulta". De saída, suplica-me para levá-lo a sério. Mostro-me solidário. Então, o bom vizinho enfatiza que a natureza o escolheu para ser um poço de enfermidades. O que fazer? Perto dele, as provações de Jó seriam fichinhas. Em seguida, vai desfiando o rosário do "quadro clínico" do momento, afundando-se desconsolado no sofá. Aí, como um cãozinho triste, fixa-me um olhar de compaixão, à espera do fatídico veredicto. Já se sente um morto-vivo, antevendo o próprio velório.
Quando lhe digo que "isso" não é absolutamente nada, esboça uma reação raivosa de desafio, como se eu dele estivesse fazendo pouco ou assinando atestado de médico de araque. Por pouco não me diz, embora sinta vontade, de me declarar um incompetente. Nenhuma novidade: será a centésima vez irá me acusar de desalmado, ao ponto de se irritar por ter vindo confidenciar. Mas, sempre volta arrependido e me botando no altar da pátria.
Meu amigo "J", já "contraiu" a maior parte das afecções catalogadas. Só "infartos" foram mais de meia-dúzia. De ameaças de AVC perdeu a conta. Coitado do seu fígado! Os intestinos funcionam porcamente. É "diabético" com glicose normalíssima. E mesmo não sendo prostático, sonha que faz pipi oito vezes por noite. Além de tudo, desconfia de seus pulmões e do pâncreas. Por sinal, já marcou para amanhã uma série de exames. Talvez apareça alguma coisa – esperanças não lhe faltam. Só assim, triunfante, tornará a sua vida mais feliz, calando a boca dos incrédulos e todos, finalmente, irão acreditar que ele é um doente de verdade...