Éramos uma animada e unida turma de catorze quase médicos, com a vantagem e o tônico da mocidade. Nossa formatura seria no final do ano seguinte e estávamos começando realizar um sonho impossível para aquelas remotas épocas: com malas e bagagens, partimos para a conquista da Europa. Por dois largos meses, hospedagem e ônibus inteiramente à disposição. E o importante: sem dinheiro no bolso, como rapazes latino-americanos, de mesadas calculadas e em permanente ritmo de poupança. Diante da admirável proeza, causamos um espanto em todos demais colegas universitários de Porto Alegre, deixando-os boquiabertos e de queixos caídos. Inacreditável, raro e absolutamente inédito, ainda por cima há cinquenta anos passados. Até nossos professores duvidavam.
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Ninguém ousava sequer imaginar que tivesse dado tão certo. Desde o primeiro ano de convívio, consolidamos um entrosamento harmônico. Dessas simbioses perfeitas, ajustadas e sincrônicas. Então, projetamos uma ideia que foi prosperando vagarosamente, a caro custo e com sombrias perspectivas. O desafio era maior do que nossas vontades e preces. Longe de ser fácil, depois de várias tentativas frustradas, a colimação dos fundos tão necessários e preciosos. Quando tudo parecia perdido, bolamos de última hora um empreendimento fantástico: montamos uma feira de diversões e utilidades para crianças que movimentou o Estado inteiro. Durante duas semanas, o parque de exposições lotou suas dependências, botando gente pelo ladrão. Com o surpreendente e maravilhoso resultado do borderô, deu e sobrou para os gastos. Daí resultou uma viagem espetacular e um livro que escrevi ("Para voar voamos"), com sabor de aventuras,na qual catorze bons companheiros puseram os europeus (e, especificamente, as europeias) em ebulição e polvorosa...
Conto essas coisas porque foi a única ocasião em que passei o Natal fora de casa. Estávamos em Amsterdam e o inverno nos benzia com um frio de rachar. O ano de 1967 chegava ao seu término e, em nosso regresso, teríamos que cumprir as últimas atividades na Santa Casa, a fim de nos diplomar. Não havia outras datas. Era pegar e largar. E quem iria rejeitar o cavalo encilhado?
Pois, na véspera natalina, nos reunimos num dos tantos restaurantes indonésios que vicejam na terra das tulipas, e, a bom preço, apreciamos a sua gostosa culinária. Cada um presenteou o seu amigo secreto (a maioria com grossas meias de lã...) festejando com imensa alegria, enlaçados na nossa fraternidade e nas nossas lembranças e saudades. Depois, perto da meia-noite, saímos a perambular pelas ruelas vazias de Amsterdam, já sob um considerável e compreensível efeito etílico. Gritávamos saudações alusivas ao Papai Noel e as famílias nos acenavam das janelas iluminadas e encortinadas. Terminamos a noitada numa "trattoria", cujo casal de proprietários italianos, na avançada madrugada, fechou suas portas só para nós, vindo se juntar as nossas mesas com soberbos pratos de massas e muitos brindes e goles de um vinho com o aroma de puro amor. Que Natal aquele!