O sol recém havia nascido na linha Mirambel, em São João da Quarta Légua, e vinte e quatro mãos alternavam-se, ligeiras, para derrubar pequenos cachos de uva bordô orgânica em cestas plásticas ao longo de 2,5 hectares. A labuta costuma render, por hora, a cada um, cerca de 30 quilos de fruta - menos da metade do que na safra passada.
A contabilidade individual, no entanto, não faz sentido. Na propriedade do viticultor Genésio Dalcorno, 71 anos, a colheita respeita a tradição dos antepassados: é voluntária, amistosa e coletiva.
Quatro famílias de vizinhos ajudam-se há anos: dois núcleos dos Dalcorno, e outros dos Formolo e Matté. Para se ter uma ideia, na safra de 2015, 12 pessoas colheram, juntas, 300 mil quilos de uva.
O clima de camaradagem é tão grande que o produtor Remiro Matté, 66, cedeu para Dalcorno a data previamente agendada, na quarta-feira passada, para que o vizinho aproveitasse o calendário de recebimento da mercadoria desta variedade na Cooperativa Nova Aliança, onde Dalcorno é associado. Os dois dias seguintes ficaram reservados a Matté, e o trabalho diminuiu por causa da quebra da produção, provocada pelo mau tempo durante o desenvolvimento da parreira.
- Normalmente, a gente trabalha todos os dias, mas neste ano não vai dar. A safra não está ruim, está péssima. É o pior ano desde que me conheço por gente - diz Genésio, que espera colher 40% do que colheu em 2015 com uvas bordô, Isabel precoce, Cora e Lorena.
E o "se conhecer por gente" não é força de expressão. Integrante de uma família de oito irmãos, Genésio participa da colheita desde sempre. Quando era criança, pegava uma latinha de óleo aberta na parte de cima e acompanhava os pais. Além disso, confeccionava as cestas de vime que eram usadas na tarefa.
- Todos iam trabalhar. Quem não alcançava nas parreiras, ficava com a latinha colhendo os grãos que estavam no chão, não dava para desperdiçar nada - lembra Genésio.- Faço cestas há 55 anos, aprendi com um vizinho que meu pai chamou em casa para nos ensinar - relata.
O filho único dele é agrônomo, trabalha na Cooperativa e ajuda nos negócios de outra maneira.
- Acho que ele trabalha mais do que se estivesse aqui. O sonho dele sempre foi ajudar a classe dos agricultores, porque via o abandono na colônia. E eu fiz o impossível para realizar o sonho dele, para que pudesse estudar - orgulha-se o pai, que segue o ofício numa linha de sucessão desde o bisavô.
Irmão dele, Valdir Dalcorno, 67, está aposentado, não vive na colônia nem tem plantação, mas sempre está disponível para trabalhar.
- É uma obrigação ajudar o outro - conta Valdir, que mora em Caxias, exibindo as mãos calejadas.
Outro irmão, Francisco Ângelo Dalcorno, 82, reforça que a troca de favores ocorre de maneira natural.
- Hoje em dia é muito difícil conseguir mão de obra, então faz anos que a gente se ajuda - observa.
Jovens são poucos
Os trabalhadores chegam aos parreirais pela manhã separados e alimentados - a residência mais distante fica a 2 quilômetros. A intenção é otimizar o trabalho, que pode se estender até as 20h. Para o almoço, cada um retorna à própria residência por volta das 12h30min.
- Tentamos sair um pouco mais tarde para não pegar o sol do meio-dia sob as parreiras, por causa do horário de verão, que é péssimo para a agricultura. Na safra, não dá para fazer banquete - explica Genésio.
Os mais novos deste grupo são os sobrinhos dele - filhos e nora de Francisco -, o que evidencia a diminuição do número de filhos por núcleo e o distanciamento dos jovens da colônia. Nascida em Santa Lúcia do Piaí, Chirléia Dalcorno, 41, chegou a viver na zona urbana por 15 anos, mas se mudou para a Quarta Légua ao casar. A primeira colheita deste ano foi nas terras do casal, com as frutas retiradas abaixo de chuva.
- A gente cuida o ano todo e não quer entregar uva feia - diz.
Ela e as outras mulheres usam um acessório a mais do que homens: luvas de borracha.
- Antigamente isso era um luxo - lembra Neiva Maggi Matté, 65.
O item garante a integridade dos dedos, porque, conforme explicam, o ácido da fruta provoca rachaduras na pele, prejudicando a realização dos demais afazeres, como tirar leite da vaca e produzir o queijo. Fica mais fácil, também, manter as mãos limpas e tirar a cor roxa das mãos, sabedoria adquirida com a prática na profissão.
Neiva já trabalhava nas parreiras antes de ir ao colégio, e hoje ajuda o marido e os vizinhos. Não é só o calor que castiga _ o frio também pode ser cruel.
- No inverno, precisamos levantar cedo para podar e amarrar as parreiras - relata.
Os três filhos deles não moram na zona rural.
- Eles estão melhor na cidade do que estariam na colônia - diz Matté.
Outro parceiro de colheita é Ari Formolo, 68, que considera mais fácil tirar uva do pé hoje em dia, por causa da infraestrutura de transporte e armazenamento.
- É moleza, a gente sempre se acompanha. Essa turminha está sempre unida, é divertido - diz.
Para ele, a amizade é o diferencial.
- A primeira coisa e a mais importante é o vizinho, a gente tem que se dar bem com ele. Se eu tenho um problema, não adianta ligar para minha irmã na cidade. São os vizinhos para quem a gente pede quando precisa, a qualquer hora do dia ou da noite - destaca.
Eles não só partilham o trabalho, mas também dividem as dificuldades de um ano ruim.
- Trocamos trabalho entre as quatro famílias, é bom poder contar com eles. E depois da safra fazemos um churrasco - diz Matté.
Juntos, optam por não desanimar - o trabalho é ofício e consolo.
- O segredo é ter fé para que o ano que vem seja melhor. Se a gente desanimar, está lascado! - sentencia Francisco.
Solidariedade
Quatro famílias na Quarta Légua, em Caxias, fazem mutirão durante a safra
Doze pessoas se reúnem para colher uvas de maneira voluntária e amistosa
Tríssia Ordovás Sartori
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