Adoro a história de vida do português José Saramago, o amor dele e da Pilar e tenho uma relação controversa com a obra dele: acho genial a forma como escreve, mas também me incomoda um pouco a falta de pontuação em algumas histórias. Amo Ensaio sobre a Cegueira, livro perturbador que é infinitamente melhor do que o filme, mesmo tendo a fofura do Mark Ruffalo no elenco, e nunca consegui terminar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, não me perguntem o porquê. Nas Intermitências da Morte o texto já se aproxima bem mais do ritmo que estamos acostumados e podemos até sorrir durante a leitura.
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Não sou uma especialista na produção literária do português, mas pensando em uma das palavras do momento — que ganhou ainda mais destaque em tempos de pandemia — vejo como a inovação se revela de diferentes maneiras. Ela já se fazia presente no ofício de escrita de Saramago. Ele conseguiu, lá pelo final dos anos 1970, criar uma nova maneira de usar o ponto final e a vírgula, que ele prefere chamar de “sinais de pausa”. As frases são marcadas por outro ritmo, dado pela oralidade, subvertendo a ordem, desorganizando a escrita e criando um novo cânone. Aboliu os dois pontos e o travessão e o narrador sempre continua a falar. Não à toa, ele foi agraciado com o Nobel de Literatura.
Mas esse texto não é para ser um pseudotratado sobre literatura: quero aproveitar a simbologia da forma como os diálogos são desencadeados na obra de Saramago para pensar sobre como pontuamos nossas vidas. Há aqueles que vivem de interrogações, tal qual jornalistas e filósofos, mas também os indecisos, que nunca sabem se devem ir ou ficar. Há os que prefiram exclamações, surpreendendo-se e maravilhando-se a cada acontecimento, dando intensidade aos momentos e fugindo de uma existência blasé. Isso só para ficar com alguns.
Tenho pensado especificamente no mais decisivo deles, o ponto final, a pausa máxima da voz. Em como eles são difíceis de serem usados, em como tendem a se tornar reticências para adiar finais inevitáveis de ciclos. E em como talvez só a morte tenha essa capacidade de determinar o fim. Das outras formas, normalmente, pontos finais, quando não viram três pontinhos, já abrem possibilidades de exclamações.
E nem sempre é tão simples: quero acreditar no ponto final como uma forma de transcendência e, usando o exemplo de Saramago, que nunca precise ser expresso. Que simplesmente aconteça, tão natural quanto uma fala.