Estamos por viver a última semana oficial do inverno. A primavera já se anuncia, com seu imaginário cultural de cores e promessas. Ainda que o clima não siga à risca essa mudança de ares, algo em nós já sente que a natureza inteira quer vibrar em outros tons. Virgem antecipa esse evento feito quem arruma a casa para uma festa. Se Libra é a arte do encontro e da busca por justiça, é em Virgem que trabalhamos para isso. O trabalho, aliás, é um assunto do sexto signo.
Muita gente encara esse tema vital com as lentes da alienação. Trabalho é batente, é o pão ganho com o suor literal do rosto, não havendo meio de escapar desse mecanismo. Se precisamos de dinheiro para poder comer, e se o mesmo é ganho no trabalho, então que cada um defenda seu ganha-pão a qualquer custo. Essa postura, porém, sustenta uma engrenagem potente no elo entre a exploração e a acomodação. E a naturalização desse esquema conta tanto com a sagacidade de quem manda quanto com o silêncio de quem obedece.
O poeta virginiano Ferreira Gullar, no poema O Açúcar, escrito há 60 anos, reflete sobre a citada engrenagem. Começa assim: “O branco açúcar que adoça meu café / nesta manhã de Ipanema / não foi produzido por mim / nem surgiu dentro do açucareiro por milagre”. O poeta expõe o esquema por detrás do produto de consumo: “Em lugares distantes, onde não há hospital / nem escola, / homens que não sabem ler e morrem de fome / aos 27 anos / plantaram e colheram a cana / que viraria açúcar”. E vem a realista percepção: “Em usinas escuras / homens de vida amarga / e dura / produziram este açúcar / branco e puro / com que adoço meu café esta manhã em Ipanema”.
O materialista poeta critica a própria poesia, ou, mais amplamente, a arte, que evita o olhar sobre o real. Escreve: “O funcionário público / não cabe no poema / com seu salário de fome / sua vida fechada / em arquivos. / Como não cabe no poema / o operário / que esmerila seu dia de aço / e carvão / nas oficinas escuras”. E alfineta: “Só cabe no poema / o homem sem estômago / a mulher de nuvens / a fruta sem preço”. E vai ainda mais fundo na crítica final: “O poema, senhores, / não fede / nem cheira”.
Trinta anos antes de Gullar escrever esses poemas na agitada década de 1960, a pintora virginiana Tarsila do Amaral, também num contexto histórico impactante, criava uma de suas telas mais famosas, Operários. Era 1933, e o governo Vargas investia na industrialização algo tardia no Brasil. Nessa obra, a modernista Tarsila pintou 51 rostos, dispostos em pirâmide, tendo ao fundo prédios e chaminés de uma fábrica. São faces de múltiplas etnias, num retrato da diversidade do povo brasileiro, mas com expressões sóbrias e cansadas, até mesmo tristes e oprimidas. O trabalho se massificava em escala industrial, mas tal modelo, aos olhos da artista, não sinalizava esperança ou alegria.
Hoje vivemos mais uma quadra histórica de intensas transformações nos labores. Entre o impacto da tecnologia e a relativização de leis trabalhistas definidas na era Vargas, há o desafio de cada cidadão manter-se produtivo e amparado. A passagem atual do regulador Saturno pelo signo de Peixes, oposto a Virgem, até maio de 2025, já impõe a urgência do assunto na pauta de revisões cruciais.
“A vida é pouca / a vida é louca / mas não há senão ela”, alerta Gullar. Então, que esteja o trabalho a serviço da honra e da vida do trabalhador. Numa primavera ideal, que o trabalho possa ser arte humana de fato. Ah, ideais! Também não dá para viver sem eles.