No café da manhã, a bisnaga de mel na mesa desperta minha atenção ainda turva pelo sono. Ah, o mel! Esse alimento, produzido naturalmente pelas abelhas e roubado pelos humanos desde tempos muito antigos, concentra propriedades nutricionais e curativas tão maravilhosas quanto seu próprio processo de produção. Mel, própolis, geleia real, cera... Abelhas são insetos utilíssimos, pelo que criam em suas colmeias. E são ainda mais vitais pelo que fazem na busca do néctar das flores, quando levam o pólen de uma flor a outra, promovendo a polinização e a posterior frutificação. Pois é, um bom mel de flor de laranjeira deixa em seu rastro a própria existência da laranja. Pode haver inseto mais adorável?
Aperto a bisnaga de mel sobre uma fatia de pão. Cheiro bom, gosto melhor ainda. O rótulo fala de uma tradição familiar de mais de 80 anos. Várias gerações envolvidas no cultivo do mel e, vale dizer, sustentadas pelas abelhas. O mundo consome mel há milênios. No Brasil, o Rio Grande do Sul é um destacado produtor. Junto com a bergamota, o mel compõe o dourado solar presente em bancas de beira de estrada e feiras, justamente quando o Sol se enfraquece pelas brumas do inverno. Não somente os gaúchos, todos os humanos mundo afora deveriam agradecer todo dia às abelhas, tê-las como sagradas.
O mel já estava em minha mente, embora latente, até ser despertado no café pela bisnaga na mesa. É que, dias atrás, fui surpreendido por um motorista de aplicativo que começou a cantarolar, acompanhado o som quase inaudível do rádio, a canção Mel, do repertório de Maria Bathânia. Parecendo feliz, ele sussurrava: “Ó abelha rainha / Faz de mim / Um instrumento de teu prazer / Sim, e de tua tua glória”. Quando identifiquei a canção, tive ganas de interagir, por também gostar da música, mas, principalmente, por aquela pequena epifania de ver um motorista, de quem esperamos certa distância supostamente respeitosa, entregar-se a uma cantoria discreta ao volante. Mas me calei. A cena era deliciosa demais para eu interferir.
Quando desci do carro, fiz questão de acrescentar uma gorjeta ao homem que adoçou e iluminou, em dose pequena mas potente, a minha manhã. Ele nem ficou sabendo, mas eu, sim, sabia do que recebera. Devo ter cantarolado Mel naquele dia, nos momentos de distração: “Pois se é noite de completa escuridão / Provo do favo do teu mel / Cavo a direta claridade do céu / E agarro o Sol com a mão”. A letra exalta a própria Bethânia, a quem o poeta Waly Salomão dedicou tais versos, musicados pelo leonino Caetano Veloso. É uma canção solar, como o mel, associado a Leão. Contudo, numa colmeia, tirando o papel centralizador e único da abelha rainha, a população quase toda será operária, encarregada de fazer funcionar perfeitamente o sistema inteiro. E aqui entra a energia do signo de Virgem.
Enquanto mastigo outra fatia de pão com mel, encerro meu rito alimentar matinal pensando nas abelhas operárias e, destas, passo para essa gente toda que carrega nas costas o doce da vida, sem que sequer provem dele. Penso no motorista de aplicativo e nas novas e precárias relações de trabalho. Penso na reinante ênfase nos resultados a desprezar as etapas vitais de produção, como se o suprassumo do lucro apagasse os andaimes que o sustentam. E penso no tão noticiado desaparecimento das abelhas. Porque não vai faltar somente o mel na mesa — vão faltar frutas, vai faltar vida. Lavo a louça, agarrado à doce esperança de ver a razão se derramar sobre a humanidade.