Um joia escorpiana na Netflix: a série britânica After Life. Só a descobri meses atrás, pela enfática recomendação de uma amiga. Maratonei com gosto e pensei em escrever sobre ela quando o Sol transitasse por Escorpião. São apenas três temporadas, com poucos episódios e de curta duração. Mas o efeito... Que mistura de intensidade e delicadeza! Temas como morte, luto e depressão são explorados pela verve ácida do multiartista Rick Gervais – autor, ator principal e diretor da série. Quem o conhece de outros trabalhos, logo identifica em After Life seu estilo afinado com o humor inglês, que costuma desafiar o politicamente correto. Dá para rir muito com a série, mas o melhor dela são as tantas camadas sutis, as maravilhosas epifanias.
Rick Gervais é um canceriano com a Lua em Escorpião. Suas possíveis ferroadas emocionais ganham asperezas adicionais pela tensão que a Lua recebe da conjunção entre Marte e Urano. O humor dele é sempre contundente e demolidor. Falar de morte e luto com essa pegada tinha tudo para ferir suscetibilidades e mesmo resvalar no mau gosto. Mas ele é inteligente e sensível demais para cair nessa armadilha. Em essência, a série é sobre o que se esconde por detrás do que é mostrado – e isso é muito Escorpião.
Gervais interpreta Tony, jornalista cinquentão deprimido após a morte precoce da esposa. Amargurado, ele vive revendo vídeos dos momentos ao lado dela e outros deixados como instruções explícitas de sobrevivência na viuvez. Logo no começo sabemos o quanto a vida de Tony girava em torno da relação com a mulher e o quanto a perda dela para o câncer o desestabilizou. A esperta cadela do casal o acompanha em casa, como um fio de vida a resistir.
Com seu luto ressentido, Tony assume uma postura cínica e virulenta para com os outros, sejam colegas de trabalho ou desconhecidos. Diz o que pensa na cara, com toda crueza. Ele é jornalista no tabloide de uma pequena cidade inglesa, chefiado pelo cunhado. Seu trabalho é contar as histórias da população local, dar cara e voz a narrativas entre o bizarro e o sublime. Tais histórias formam um eixo importante da série, ao mostrar o esforço de cada pessoa para ser especial e ter sua vida valorizada.
Outro eixo genial surge dos encontros frequentes entre Tony e uma espirituosa viúva que vai ao cemitério “conversar” com o marido. Diante das sepulturas, os dois viúvos trocam impressões pessoais, entrelaçando vida e morte em iluminações emocionantes. Enquanto isso, Tony visita regularmente o pai já frágil e sem memória num hospital. Sim, tudo parece confirmar que a vida é mesmo um sopro. Perdas de toda sorte estão aí, a validar cotidianamente a vitória da morte. Como não ser niilista e insensível?
Eis um tema universal, tantas vezes já abordado pelas artes. After Life, contudo, consegue ser original pela condução sensível do processo de consciência do personagem em relação tanto às couraças emocionais erguidas como defesa quanto à fundamental entrega a uma compaixão redentora. E isso sem qualquer traço de pieguice. Para além de seus méritos dramatúrgicos – é tudo perfeito, da fotografia à trilha sonora, do texto ao elenco –, After Life é uma jornada de autocura que ressoa em todos nós, humanos, sempre abalados pelas perdas tantas e pelo mistério doloroso da morte.
Em tempos de uso oficial da indiferença e da crueldade como proteção contra a própria desorientação, apostar no retorno ao humanismo não cura apenas a nós mesmos. Cura um país, cura o mundo.