Escrevo embaçado de lágrimas, sentindo no peito aquele buraco de dor de quando perdemos alguém muito próximo. Pois não morreu somente uma das maiores cantoras do Brasil. Quem partiu foi ela, Gal, a minha Gal, a número um para mim desde a infância. Morreu não apenas a artista cuja trajetória se fundiu com os movimentos e experimentações da cultura brasileira por mais de 50 anos, mas a responsável pela trilha sonora de grande parte da minha vida. Eu devia aqui assumir o distanciamento jornalístico para louvar essa estrela de máxima grandeza de nossa música, mas estou por demais envolvido afetivamente com ela para manter-me frio. Tudo dói, Gal. E só consigo escrever assim, como quem falasse contigo na intimidade que criei como devotado fã.
As memórias brotam e me atropelam. Vejo-me menino, tua voz na abertura da novela Gabriela: “Quando eu vim para esse mundo, eu não atinava em nada...”. Parecia que era a própria Gabriela cantando. Sei que o Daniel Filho até te convidou para fazer a personagem, mas, toda tímida, disseste que não eras atriz não. Eu ainda não sabia nada do que já tinhas sacudido na música e no comportamento. Só fui conhecer depois, já adulto, o que tinham sido as revoluções tropicalistas, a tua mudança de cantora contida no estilo bossa para os berros roqueiros de “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”, a tua resistência aos tempos duros da ditadura com o absolutamente perfeito show Gal a Todo Vapor, teu flerte contínuo entre o melhor do cancioneiro do passado e as inovações do presente e tuas posturas ousadas contra a caretice.
Eu era adolescente quando as rádios estouraram Tigresa, e de novo eras tu, encorpando a personagem, de unhas negras e íris cor de mel. Até que um dia minha irmã chegou lá em casa com o disco Água Viva, em 1978. E era Gal a toda hora, e eu decorei rapidamente todas as letras. Meu Deus, o que era aquela tua voz cristalina, aquele repertório? Aos 16 anos, uma prima, sabedora de minha paixão, levou-me ao show Gal Tropical, em Salvador. Ainda sinto o frenesi de quando entraste no palco, meu riso idiota de orelha a orelha, no delírio de achar que olhavas para mim. Sei bem como são essas fissuras juvenis, mas o certo é que em mim nunca passou a velha paixão.
Quando comecei a trabalhar, com meu primeiro salário comprei dois discos teus. E depois os antigos e os que vieram. Eu já era um alucinado pela MPB, mas quem me conhecia de perto sabia bem: Gal era Gal, doce bárbara soberana. O sucesso te abraçou como nunca na década de 1980, tiraste o Brasil do chão na celebração de Festa do Interior e o fizeste olhar-se no espelho crítico com o refrão: “Brasil, mostra tua cara, quem vê quem paga pra gente ficar assim”. Já não eras somente aquela cantora de carreira ímpar e impactante, mas Gal, um padrão estético e comportamental. Marisa Monte e outras divas mais só surgiram porque vieste antes. Tu és mãe de todas as vozes, como disse Nando Reis.
E agora, Gal? Como ficamos sem ti? Como fica o quarteto fantástico baiano que formaste com Caetano, Gil e Bethânia? Como fico eu, sem mais poder ansiar por um novo disco teu? Como fica esse país tão carente de cultura e delicadeza e doçura? Ah, o consolo de contar com o tanto que fizeste, com o que já nos revelaste desse Brasil com tua arte! Sabemos: é preciso estar atento e forte – a morte chega sem avisar. E também sabemos que só o amor vence a morte, porque nossos mortos vivem em nós. Sendo assim, apesar da tristeza tamanha, que possas viver sempre em mim, em nós, nesse encanto que nos deste e que nunca morrerá.