Dizem que o divã é o altar dos loucos, acolhe bastardos, exorciza depravados, põe de joelhos rebeldes. Reza a lenda que psicólogos, psicanalistas e psiquiatras subjugam os pirados, aquela gente avessa, oblíqua. Enfim, os antagônicos que lutam contra a manutenção do sistema.
Em resumo: só os doidos batem à porta de quem estuda a psiquê humana. Dito de outro modo, foi isso que ouvi enquanto aguardava, paciente, na fila da farmácia. Fila de gente com receita para renovar o estoque tarja-preta.
Li na programação da 40ª Feira do Livro de Caxias que o Vitor Ramil vem para cá tocar num palco perto do chafariz da Praça Dante — o poeta do purgatório, antessala entre céu e inferno. Numa parceria musical com o mano Kledir, Vitor canta: “poetas loucos de cara, malditos loucos de cara, inquietos loucos de cara, ah, vamos sumir”.
Dante há de fitar nos olhos do Vitor, esverdeados como o prado pampiano, cenário das mil e uma Ramilongas, convicto de que nem a finitude do corpo esmaece a poética. Louco isso, né?
Impacientes também se rendem ao sofá da sala de espera. Aguardam roendo as unhas, tentam esconder as mãos suadas e as pernas trêmulas, lavam o rosto com o sabonete líquido que custa os olhos da cara. Rito de gente religiosa, devotos à espera de um milagre.
Sentados no sofá, na antessala da caverna de Platão, a vida não para — continua acelerada. Apesar dos comprimidos, é difícil controlar as emoções que ricocheteiam dentro da gente, desabafa a senhora à minha frente na fila da farmácia. Não foi bem assim que ela disse, mas o sentido é esse.
Lenine, outro poeta louco, da verve de Ramil, canta, quase sussurrando, costurando sua voz à melodia doce e envolvente de um violão terno como o ventre materno: “enquanto todo mundo espera a cura do mal, e a loucura finge que isso tudo é normal, eu finjo ter paciência, e o mundo vai girando cada vez mais veloz, a gente espera do mundo e o mundo espera de nós, um pouco mais de paciência.” A vida é tão rara, né!?
Se serve de consolo (aos loucos no divã), Ney Matogrosso contradiz a maioria das pessoas da fila da farmácia à espera da última edição do novo tarja-preta (remédios que não curam nem amenizam a pressão): “sim sou muito louco, não vou me curar, já não sou o único que encontrou a paz, mas louco é quem me diz, e não é feliz, eu sou feliz”. Debochado, né?
Ano que vem, quem sabe Chico César seja o artista ocupando o palco perto do chafariz. Quem sabe, compartilhando do palco ao lado de Ramil, Lenine e Ney. É sonhar demais?
Sugiro até o nome para a reunião desse quarteto: Malditos Loucos de Cara. Segunda sugestão: estendam divãs na praça, não só para o povo curtir os shows com mais conforto, mas, principalmente, para provocar uma doida catarse à luz do luar, aos pés do poeta Dante.
Escrevo isso tudo à sombra da lucidez dos versos entoados por Chico César: “quando o olho brilhou, entendi; quando criei asas, voei; quando me chamou, eu vim; quando dei por mim, tava aqui”. Versos costurados, logo a seguir, pela poética dessa crônica-devaneio.
Versos entoados, em uníssono, pelo quarteto: “poetas loucos de cara, malditos loucos de cara, inquietos loucos de cara, ah, vamos sumir”.