Terça-feira à tardinha. UCS Teatro. Na plateia uma jovem questiona o jornalista com 50 anos de profissão. Na melhor expressão que o identifica como um bom repórter: ele é um cara que suja a sola dos sapatos, acostumado a retratar histórias de gente invisível, em ambientes hostis. Um cara que já viu a morte sob diferentes perspectivas.
A jovem queria saber como ele fazia pra lidar com tanto horror e, depois, como dormia sem que sua mente, corpo e espírito ficassem borrados da frieza dessa dura realidade que ele, como repórter, enquadra pra ser exibida na telinha da tevê e ser vista por milhões de brasileiros.
Invariavelmente, são histórias que ninguém conta, não nessa perspectiva porque, no final das contas, esse homem com um microfone na mão ajuda a escrever a História que a sala de aula não comporta.
Mas, enfim, Caco Barcellos, como lidar com esse horror?
Enquanto ela comentava sobre os assuntos retratados pelo repórter, muitos deles envolvendo a morte de jovens, como uma forma de preparar a pergunta, que soou afável e cortante ao mesmo tempo, ele se acomodou melhor na poltrona, alinhou o corpo, posicionou o microfone e, depois de um curto suspiro, respondeu que se alimenta e se renova diariamente, a cada contato com os mais diversos personagens desse imenso Brasil, gente que sobrevive à margem, tentando driblar experiências traumáticas, de escassez, medo e angústia, entre um fio e outro de esperança. Porque a esperança tão bem define o brasileiro.
Em suma, apesar do horror, Caco se considera um cara privilegiado por ser o repórter que está disposto a encarar todo tipo de pauta, porque está convicto de que a sua missão é contar a história que ninguém vê. Ou quer esconder.
Enquanto ele respondia, abriu-se um portal na minha mente que me devolveu a um cenário perturbador, e que, estranhamente, suscitava o mesmo sentimento de renovação citado pelo Caco, como sendo essa a melhor forma de sublimar os traumas que ele, enquanto repórter, depara-se pelo caminho.
Em 2019, passei três meses mergulhado num dos assuntos tabu mais perturbadores: o suicídio. A partir desse portal, adentrei no espinhoso universo da morte — o segundo maior tabu, depois do suicídio.
Entrevistei pessoas que atravessam a aspereza da vida à sombra da depressão, visitei um grupo de apoio a pais que perderam seus filhos, ouvi relatos de quem tentou se matar, chorei com enfermeiros que lidam com a morte iminente nos corredores de hospitais.
Ao fim e ao cabo, escrevi cinco reportagens sob o tema Um olhar sobre a vida. Também me senti alimentado, como disse o Caco, por ouvir histórias de tanta gente que, apesar de tudo, sublima suas dores e traumas na esperança de que amanhã possa ser melhor do que hoje. Um dia por vez...
O Caco não reconhece, mas a alma da gente fica borrada, sim.