Perdemos mais uma batalha. Vida e morte, severina. Crônica de uma morte anunciada.
À luz do dia, um criminoso portando tornozeleira eletrônica é alvejado com mais de 35 tiros à queima-roupa. Agora, neste instante, enquanto a gente conversa, um grupo de amigos trama o primeiro assalto, encorajado por um três-oitão que um dos guris encontrou na casa do pai. Semana passada, um jovem ianque pegou um rifle, subiu num telhado e atirou contra o Trump. Pegou de raspão. Rejeitado em um clube de tiro, o jovem retrucou. Morreu do mesmo jeito que tentou matar Trump.
— Tudo posso naquele que me fortalece — diz a mãe, em forma de oração, intercedendo pelo filho que carrega a Bíblia debaixo do braço.
— Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece os meus pensamentos — responde o filho, investido de fé, recitando o versículo 23 do salmo 139.
À caminho da igreja, uma bala perdida e afoita, disparada em um momento de aflição, atinge em cheio o peito do jovem, encharcando a Bíblia de sangue. Ainda mais sangue. O pastor, consolando a mãe, inconsolável, diz:
— Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira. Não deis lugar ao diabo.
Glauber Rocha deu lugar ao diabo na Terra do Sol, em batalha contra Deus, sob juízo de Antônio das Mortes. É só um filme. E num filme não cabe a urgência da vida, nem a sua poética. A vida não cabe em lugar algum, só comporta a si mesma. Nem na música, tampouco na literatura. Viver é desviar de tiroteios, é apaziguar gritos e sussurros. Viver é esquecer-se dos compromissos, dos boletos, das doutrinas e das injustiças. Viver é maravilhar-se com o inevitável, é desapegar-se do sentido. A vida é clichê: não se explica, vive-se.
Metamorfoseados, “vivemos” aprisionados nas jaulas digitais. Perdemos mais uma batalha. Não bastasse a violência que ceifa vidas, exercitando a separação do joio do trigo com a satírica lucidez de quem posta inverdades, padecemos no simulacro, na imitação do real, embaralhando as fronteiras que separam dia e noite, Deus e diabo, verso e reconvexo.
A vida é Maria Bethânia cantando: “Seu olho me olha, mas não me pode alcançar”. O olho do grande irmão vê apenas uma parte do que a vida permite que seja visto. Com ou sem filtro, as paisagens no Instagram são apenas um recorte da vida como ela de fato é. A família feliz do comercial de margarina agora, pós-moderna, ocupa as redes internéticas. E ainda tem gente que acredita no que vê nas redes virtuais, nada sociais.
— A arte imita a vida — diz Aristóteles.
— A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida — retruca Oscar Wilde.
— A vida não imita a arte. A vida imita um programa de televisão ruim — ironiza Woody Allen.
Enquanto isso, distantes do paraíso bíblico, mais próximos do cataclisma, entre mortos e feridos, a vida se esvai.