A Capital do Brasil é o boteco. Botequim pra uns, lancheria pra outros. Ou, tão somente, bar ou cafeteria. Não importa. Desde que tradicional, sem requintes e adornos decorativos, o boteco é o lugar onde todos os problemas da nação são resolvidos antes do amanhecer. Dos mais prosaicos, como a melhor escalação do ataque da Seleção Brasileira, aos mais espinhosos, como o direito ao aborto, ao porte de armas ou de maconha.
Entre petiscos e bebidas, os convivas se tornam especialistas financeiros, jurídicos e futebolísticos. No boteco, democraticamente, todos são médicos, teólogos ou generais, farmacêuticos, políticos ou golpistas, críticos literários, arquitetos e até justiceiros.
Curiosamente, os espaços gourmetizados e instagramáveis não costumam inspirar debates profundamente singelos, filosoficamente efusivos e intensamente reveladores como se vê em um tradicional boteco ou cafeteria. Os gastropubs estão na moda, eles são fruto de um mindset inovador. Colorem postagens em redes sociais, embaladas por trilhas sonoras, geralmente, plastificadas. Mas não estou convencido ainda do real motivo pelo qual esses ambientes modernos abafam a fruição que desfila, desenfreada nos botecos.
Por exemplo. Nesta quinta-feira (27) se inicia o festival 8½ Festa do Cinema Italiano, no Ordovás. Daí, lembrei que o nome dessa mostra é inspirado em Oito e Meio (8½), um dos mais enigmáticos filmes do diretor de cinema italiano Federico Fellini. A obra, lançada em 1963, e protagonizada por Marcello Mastroianni, interpretando Guido Anselmi, o alter ego do diretor, era pra ser batizada de Fellini. Contudo, o cineasta resolveu brincar com o fato de ter realizado até então seis filmes como diretor solo e outros três em parceria, Mulheres e Luzes (1950), Amores na Cidade (1953) e Boccaccio ‘70 (1962). Cada uma dessas produções que ele co-dirigiu resolveu contabilizar como “meio filme”. Juntado os seis que ele já havia dirigido, somando as metades dos que realizou em parceria (de três, resultando em 1½), nascia então o icônico Federico Fellini’s 8½. O oitavo filme e meio do Fellini.
Esse devaneio, mezzo papo de crítico de cinema que resolve os problemas mundiais da sétima arte, brotou num boteco, despretensiosamente fitando o cartaz da Festa 8½, disparando em mim gatilhos de memória cinematográfica. Talvez seja só comigo que ocorra o dito “bloqueio de devaneio em ambientes instagramáveis”. Mas, talvez — e é só uma suposição que precisa ser ratificada (conscientemente in loco) — os gastropubs da moda se preocupam tanto com a decoração e os pratos sofisticadamente descolados, que todo esse mise-en-scène esmaece a alma criativa e inspirada que paira, desmedida, nos botecos da vida.
E nada disso muda a vida de ninguém, nem resolve os problemas globais. Dito isso, bora pro boteco?