Carnaval rima com praia. Pés na areia, indo dormir só depois que o sol desponta no horizonte. Nem gosto do ziriguidum. Gosto do samba por causa da melancolia, não do repique. Defendo o estandarte do bloco zero à esquerda, de quem é perna de pau em qualquer avenida.
Prefiro observar sentado, até na sarjeta, se for o caso, o trânsito dos foliões, as ruas sendo ocupadas, os veículos deixados de lado, a gurizada que brinca, os apaixonados da estação, a chuva de serpentina e a algazarra toda que se desdobra em muitas vozes e coros.
Carnaval nunca será só samba no pé. O Carnaval é também muvuca e polifonia, o vestir e despir de máscaras, a alegoria que seduz, a vertigem da insensatez, a lágrima que desvela a gargalhada, o compasso de espera, a lucidez do canalha, a estupidez do sensato.
Certa feita, num Carnaval juvenil, saí de casa, em Areias Brancas, rumo ao centro de Arroio do Sal com uma câmera de vídeo na mão. Pois é, os telefones não eram smart e serviam apenas pra fazer e receber chamadas ou, no máximo, enviar torpedos.
Passei na casa do Paulo, um cara que eu só via no verão. Sempre tivemos bons papos, ora filosóficos, ora paranoicos, transitando sempre pelas esferas da arte. Especialmente naquele dia, o Paulo parecia estar em sintonia com a atmosfera carnavalesca (algo atípico pra quem vestia uma camiseta do Soundgarden) e, por isso, topou interagir com a galera por onde andávamos, enquanto eu registrava tudo em vídeo.
Entrei na faculdade de Jornalismo uns quatro ou cinco anos depois e lembro de comentar com um professor de sociologia sobre essa história. Curioso, disse que gostaria de assistir ao vídeo pra desenvolver um estudo antropológico a partir disso.
Nunca levei a fita. Com certeza ele não veria nada de antropológico. Uma das entrevistas, por exemplo, foi com um vampiro. Pois é, um cara fantasiado de vampiro. Nesse caso, fantasia é pleonasmo. O vampiro de Arroio do Sal estava toscamente maquiado, com tinta preta no entorno dos olhos e usava uma dentadura de plástico.
— E aí, vampiro, beleza?
— Como tu descobriu que sou o vampiro?
— É por causa desses dentes afiados.
O vampiro então puxou o Paulo pelo braço, saindo do meio da muvuca, como se quisesse revelar a ele um segredo. Sem desligar a câmera, fui atrás pra saber o que estava rolando. Então o vampiro disse, ao pé do ouvido do Paulo:
— Eu vim hoje pra fazer discípulos. Ninguém tinha me reconhecido até agora. Mas vocês, sim. Me encontrem amanhã, à meia-noite, atrás da igreja de Areias Brancas.
Depois disso, o vampiro sumiu no meio da multidão.
No dia seguinte, revimos a cena bizarra e rimos como crianças. O cara não só vestiu o personagem. Ele era o vampiro. Ele realmente acreditava ter acesso ao mundo das trevas e disse que nos conduziria nessa travessia. Ponderamos ir à meia-noite pra rever o vampiro. Mas ainda tinha a segunda noite de Carnaval. Partimos então pra Arroio do Sal com a câmera na mão.
— Eu vim buscar vocês — disse o vampiro, num rompante, vindo sei lá de onde.
Dessa vez, eu não estava gravando e o Paulo, muito camarada, disse pro cara:
— Tá bom, meu! Vai lá buscar uma ceva pra gente. Ainda é Carnaval.