E se... E se fosse o último suspiro do último despertar do último olhar? Não sei ao certo qual é o sentimento de quem dorme e acorda dentro de um quarto de hospital, amarrado a um sem fim de cabos e tubos, no imponderável furor de agarrar-se à vida. Suponho, porque já estive ao lado de quem encarava dias, noites e madrugadas sem saber se haveria amanhã. Até que um dia, de rompante, não houve.
E se eu não pudesse, nunca mais, fitar o teu sedicioso olhar, simplesmente porque uma cegueira sem explicação se impusesse diante de mim? Uns diriam que é maldição, outros, sublimação, pois eu teria de recorrer a uma bravura que não sei se há em mim pra superar as armadilhas do mundo, espalhadas por aí, atravancando o caminho de quem é deficiente visual.
E se, ao estender a roupa no varal eu fosse surpreendido por uma bala veloz e fervendo atravessando meu peito e, milimetricamente, rompesse meu pulmão, rasgando meu corpo esquálido, e deixando o registro bélico cravado na parede da lavanderia? “O terror”, diriam alguns poucos, enquanto que a maioria só repetiria a esmo: “talvez seja só mais uma bala perdida”.
E se os que não mediram esforços pra combater a covid-19, no front de guerra, dentro das UTIs, tivessem morrido, um a um, quem teria cuidado de quem estava enfermo, desesperado, no limite entre a vida e a tão sonhada eternidade? Talvez não houvessem sequer histórias de superação pra repórteres como a minha colega Aline Ecker contar.
E se as pessoas não matassem mais em nome de uma única verdade, um único jeito de encarar a vida, uma única certeza por meio de uma única voz? E se o verbo e tantas outras metáforas criadas como uma forma de explicar o divino nas mais diversas culturas pudessem ser só o vetor da vida, que é pra isso de fato que foram concebidas?
E se um jogo de futebol, mesmo em uma Copa do Mundo, pudesse ser tão somente um jogo de futebol, que apenas suscita emoções durante a partida e, depois, como a torcida não ganha nada com a vitória desse ou daquele, virasse só o registro de mais um dia na vida? É sonhar (ou seria a melhor palavra, delirar) por um mundo melhor se um torcedor não desejasse e lutasse com toda raiva pra matar o adversário fora de campo?
E se a poesia salvasse e redimisse? Era só abrir um livro, por exemplo, da Ana Cristina Cesar (1952-1983), e fluir na leitura, como se a virtude do olhar encontrasse a virtude de se saber amar, sem muralhas, sem entraves, sem despistes, tampouco dissensões de qualquer ordem. Pra mim, ao menos, seus versos são bálsamo e sublimação: "Tarde aprendi / bom mesmo / é dar a alma como lavada”.
E lá se vão 39 anos e 32 dias sem Ana Cristina, a quem nem mesmo o peso do mundo — apesar de matá-la — subjugou a sua poesia.