Recorro aos livros como quem suplica por socorro. Apesar do desafeto, desamor ou desterro é na literatura que o abismo pode reservar, mesmo que lá no fundo, um punhado de terra fértil que faça valer a pena recomeçar. Da mesma forma que o amor parece fazer mais sentido se decifrado por meio da poética que pode brotar apesar do terreno, e sempre vai ecoar como uma doce lembrança da brisa do mar a suscitar um sorriso bobo e piegas.
Há quem passe a vida regando o mesmo pedaço de terra no vão desespero de ver germinar ali o imponderável. Gente como Manoel de Barros que, dentre tantas obras, escreveu Livro sobre o nada. É quase uma ofensa, como se o pai do filho pródigo não permitisse o seu regresso depois das noites devassas e de comer junto aos porcos. “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”, escreve Manoel, como se entregasse um punhado de sementes ao desvalido, para que este pudesse semear na terra onde o perdão deu lugar a córregos de mágoa.
Seja dentro da noite veloz ou na vertigem do dia, há muitas vozes difusas, oblíquas e dissonantes a romper o atroz silêncio que impõe ao vigia a impávida servidão cujo olhar monocórdico procura um alvo em alguma parte. “A poesia é, na verdade, uma fala ao revés da fala, como um silêncio que o poeta exuma o pó, a voz que jaz embaixo do falar e no falar se cala”. O trecho do poema Falar, de Ferreira Gullar, desequilibra a trapezista, que, em queda livre, agarra-se com furor ao nada como um bebê que chora antes de romper o ventre.
E quando o som da voz nunca irrompe o peito? E quando o som da palavra não reverbera? E quando o significado das coisas só é atribuído pelo gesto que é uma das linguagens do corpo, mas que, para o surdo, se transmuta em língua? Sendo assim, essa palavra-gesto nasce com poder para derrotar o silêncio mordaz, da mesma forma que pode suscitar com doçura a poética para além do verso dito, a fim de traduzir metáforas.
Jamais esquecerei de quando vi a baiana Helenne Sanderson arrancar um poema do centro do seu ventre e revelá-lo através de uma poética linda, doce e emocionante por meio do gesto. Isso foi em maio de 2019, em um espaço cultural que nem existe mais.
Percebi que dessa forma ela havia conduzido os ouvintes a entenderem a sua língua através da metáfora do gesto. E escrevi, a respeito do que vi, em texto publicado em GZH na época: “E talvez resida aqui a maior arma que romperá a barreira que um dia se impôs entre surdos e ouvintes: a poesia do gesto é tão ou mais potente do que a própria palavra dita – ou escrita”.
Ou ainda como explica Gullar, no poema Fica o dito pelo não dito:
“É que só o que não se sabe é poesia / assim / o poeta inventa / o que dizer / e que só / ao dizê-lo / vai saber / o que / precisava dizer / ou poderia / pelo que o acaso dite / e a vida / provisoriamente / permite”.