Religiosamente, às 7h15min, um senhor de terno e gravata senta-se à mesa de um café perto da Igreja de São Pelegrino. Tem sido assim há mais tempo do que o atual proprietário se lembra. O mesmo pedido de sempre: café com leite e um pão cacetinho com manteiga, salame e queijo, brevemente tostados na torradeira. O ponto certo é o pão quentinho, mas ainda macio, enquanto o queijo começa a derreter.
Antes ainda do café, ele tira o blazer e se ajeita na cadeira. Sentado à mesma mesa de sempre folheia o jornal diário. Despende do mesmo tempo de leitura para a seção de economia e para a coluna social. De quando em vez, quase de forma involuntária e talvez para reforçar a concentração, ajeita o óculos apenas com a mão esquerda. Franze a testa quando parece preocupado com os resultados e prognósticos da economia global, que, diz ele, sempre interferem no nosso quintal. Também franze a testa quando vê destaque em fotos da coluna social para o que ele chama de “gente que vive da herança do passado”.
— Ele sempre deixa um resto de café na xícara — revela o balconista.
O ritual de beber café, comer o pão brevemente tostado e ler o jornal nunca passa de 30 minutos. Todos ali sabem que ele está de saída quando limpa o bigode com um guardanapo ainda não utilizado. A deixa final, antes de vestir o blazer, é dobrar o jornal ao meio e deixar sempre a contracapa à mostra.
Por volta das 8h, entra pela porta da frente da empresa onde trabalha. Sempre cordial, faz questão de trocar meia dúzia de palavras com a meia dúzia de pessoas que trabalham no setor comandado por ele. Uns dizem ser o coração de uma companhia. No pavilhão maior, estabelecido atrás desse primeiro prédio, onde fica o departamento comercial, cerca de 300 funcionários já encaram duas horas de trabalho pesado. A extensa lista de pedidos que acelera a produção só é possível porque esse senhor, de terno e gravata, que toma café com leite no mesmo lugar há anos, empenha-se a liderar uma equipe dedicada a vender implementos rodoviários mundo afora.
Não raro, em meio a ligações telefônicas com gente da Serra, São Paulo, Assunção ou Santiago, recebe funcionários em sua sala. Um deles me contou que o empresário, pacientemente, ouviu o relato de sua dramática condição financeira e, em poucos minutos, lhe deu uma aula de como mudar essa situação em poucos meses. Dito e feito, fiel aos ensinamentos do patrão, o homem reorganizou suas finanças, comprou bens e se orgulha de ter investido na educação dos filhos, que hoje em dia têm cargos importantes em empresas fora do Brasil.
Na mesma sala, na mesma mesa onde debruçou-se para traçar a estratégia que tiraria o funcionário do abismo financeiro para uma condição de bonança, havia um exemplar de um livro de Jayme Caetano Braun.
Tempo é alguém que permanece
Misterioso impenetrável
Num outro plano imutável
Que o destino desconhece
Esses versos ressoam quase como uma profecia. Porque assim são as memórias desse empresário, daquele torneiro mecânico, do pedreiro que estabelece as colunas desse novo arranha-céu no Panazzolo, ou ainda, do carteiro que entregava cartas assobiando, estampando sempre o mesmo sorriso na face. Porque morrer é viver um outro tempo, em uma nova dimensão. E sobreviver é lutar pela permanência da memória.