Passava das 3h da madrugada e eu continuava a zapear músicas pelo streaming com a mesma velocidade com que trocava de livros. De Mirisola a Kafka, de Baldi a Pessoa, de Dostoiévski a Caio F., passando por Gay Talese e Hermann Hesse, nada parecia fazer sentido, nem mesmo o Gullar. Sentado à beira da cama, depois de esfregar os olhos e virar goela abaixo o último resquício de Ypióca, vi Clarice dançando, como se fosse através do olhar em espiral, suave e envolvente, como em Asas do Desejo, do Wenders.
"O que escrevo é só um clímax?", pergunta-me Clarice, como se quisesse enredar-me (mais uma vez, para dentro dos seus livros). E, antes que eu respondesse, ela prosseguiu, com um sorriso debochado: "Meus dias são um só clímax: vivo à beira".
Ao ouvir Clarice fechei os olhos, quase em outra dimensão, e larguei o peso do meu corpo. Caí sobre o colchão macio, com perfume de alfazema. Sorri, bobo, como um menino. Olhos cravados no teto, percebi que era só um tipo de sonho que se sonha acordado. Como a brisa do mar, o silêncio foi rompido pelo som de violões em harmonia, um deles com cordas de nylon e, o outro, de aço, em acordes emoldurados por uma voz tão familiar quanto a do irmão que nunca tive: "Tô vivendo em outra dimensão, longe de você...".
Ramil e Clarice são dois mundos de um mesmo universo particular. Ambos têm no DNA a sutileza de quem sabe sorver a poética do frio em si, deixando reverberar frases em fragmentos de êxtase, sem que pareçam efusivos. Bandeira nunca versou sobre o olhar de Ramil. Mas Ramil tem olhos da cor do prado verde dos campos de um pampa em desterro.
Clarice, sim, foi versada pelo poeta que ficou atônito: "Meus olhos, com toda a minha tristeza, toda a minha alma desgraçada, entraram de repente nos seus, mergulharam completamente neles. Ela se deteve um instante – eu só via aqueles olhos verdes – e me recebeu como se fosse uma piscina (...)". Rubem, o Braga, teceu em crônica esse encontro, revelado por Bandeira. A crônica, no entanto, é só um breviário da pulsão de amor e morte que nasceu do choque de olhares.
E, num dia desses em que a gente nem sabe se é verdade, sentado à borda do prado verde, fitando no horizonte o amanhecer, Ramil diz-me, enquanto sorve um mate-amargo: "Eu existo em Satolep, e nela serei para sempre (...) Quem viver verá que estou ali".
Antes que eu pudesse perguntar que lugar é esse, o céu pesou. Não havia mais a cor do sol alaranjado no horizonte, apenas a cor de chumbo trazendo raios, trovões e chuva intensa. Na varanda da casa em que nunca estive, Clarice dizia esperar-me há anos.
"Eu não te disse que viver é apertado?", reafirmou Clarice, com aqueles olhos cor de piscina, intensos e inebriantes.
"Pois fui dormir e sonhei que te escrevia um largo majestoso e era mais verdade ainda do que te escrevo: era sem medo. Esqueci-me do que no sonho escrevi, tudo voltou para o nada, voltou para a Força do que Existe e que se chama às vezes Deus".
E antes mesmo que pudesse me refazer diante da cena dantesca, Clarice sentenciou:
"Tudo acaba, mas o que te escrevo continua".