Talvez a pergunta mais importante, em termos filosóficos, que podemos nos fazer neste momento, seja esta: “E depois que tudo isso passar, nos tornaremos seres humanos melhores?” Um rápido olhar pela história mostra que hecatombes, guerras e pestes não têm exatamente um poder purificador sobre a nossa raça. É evidente que, quando sofremos, a consciência e a sensibilidade acabam por se aguçar. Ficamos atentos, observando com acuidade o que antes pertencia à ordem do banal, do esquecível. Porém, com a normalização e a volta a uma rotina que tantas vezes entorpece, a tendência é que nos acomodemos ao fluxo natural da existência. Sem pensar ou refletir com constância. Como contraponto, vale lembrar que prosperamos pela ação, impondo certa ordem nas coisas. O fato é que todos parecem aptos a ponderar quais perigos nos pareciam inexistentes até então. A presença de um vírus letal roçava vagamente o imaginário. Nada além disso. Agora fomos sacudidos de um torpor atávico. Acordamos a contragosto e nos percebemos imersos numa realidade moldada pelo sombrio e pela incerteza. Manter a alma serena exige um esforço extra, trabalho que tantos parecem se sentir inábeis a executar. Estão presos em suas casas e dentro de si mesmos.
O certo é que essa pandemia se revelará também interior. Fico imaginando como estão se virando os casais que se toleram precariamente e que o distanciamento mantinha em estado morno o que já feneceu. Obrigados a uma convivência diária intensiva, é provável que esses sentimentos se potencializem. Leio que na China, findo o confinamento, muitos matrimônios encontraram o seu fim, lotando cartórios com pedidos de divórcio. O contrário há de se revelar verdadeiro: maridos e esposas que mantêm um relacionamento ancorado no diálogo e na tolerância, verão nisso uma ocasião “privilegiada” para confirmar a benção que é contar com a presença um do outro. Manterão a sua solidão, e o espaço a ser compartilhado exaustivamente não será em hipótese alguma um tormento. O gosto pela conversa, aliás, é o pilar central de toda relação que se quer longeva. A paixão e o furor erótico são contundentes armadilhas da natureza. Com data de validade marcada. Dividir gostos em comum, assistir filmes, comentar passagens de livros com quem permanece ao nosso lado por escolha, é um dos grandes prazeres que a vida nos dá.
Acredite: o que está acontecendo está longe de ser uma maldição divina. Apenas um ciclo diverso em que a capacidade de sobrevivência está sendo testada. Agora com múltiplas vantagens com o que se passou na Idade Média, por exemplo, pois dispomos da única aliada possível: a ciência. É ela quem derrota as superstições e amplia a possibilidade de ainda habitarmos esse planeta. Reze, mas continue lavando as mãos. Hoje você espia pela janela. Amanhã poderá abraçar o mundo novamente.