Quando o sol se põe, e agora com o home office as possibilidades de admiração pelas sacadas e janelas, aos fins de tarde, têm sido mais generosas, é porque o amanhã está se aproximando. Ah, o amanhã, lugar da saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi, na síntese impecável de Renato Russo, um conceito poético para utopia, o que pode parecer redundante.
O presente, o hoje, apesar dos pesares, dos percalços e das pandemias, é a bênção, é a dádiva, é a vida. O amanhã é o anseio de uma nova vida. Em outros tempos, o amanhã simbolizou a busca da liberdade, de um pouco de justiça social, de democratização de oportunidades. Em alguns casos, esse amanhã ainda não chegou, está longe, e deveria nos mover nessa perseguição ao que ainda falta, ao “tudo que eu ainda não vi”. Mas não, essa ânsia do amanhã generoso – porque é também para os outros – extraviou-se pelo caminho. Coincidentemente, desde então, o mundo perdeu muito da graça.
A mais recente peça publicitária da rede Zaffari recupera um clássico dos Anos 70 e 80 e nos devolve por instantes ao conceito histórico e poético do amanhã. Embalada no ambiente familiar que caracteriza a rede, soa a melodia da música Amanhã, de Guilherme Arantes, anos mais tarde interpretada por Caetano Veloso. Naquele tempo, era a utopia em forma de música, que tocava familiar nas rádios e nos walkmans de então – para quem não sabe o que é walkman, tratava-se de um precursor dos aplicativos musicais de hoje, mas movido a fita cassete. Fita cassete? O que é isso?
“Amanhã será um lindo dia, da mais louca alegria... / Amanhã, mesmo que uns não queiram, será de outros que esperam ver o dia raiar... / A luminosidade, alheia a qualquer vontade, há de imperar...” Mas o anseio pelo amanhã melhor não ficava apenas na canção de Arantes. Também tem a clássica Apesar de Você, de Chico Buarque, de alta carga política e poética – “Amanhã vai ser outro dia... / Você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia... / Como vai se explicar vendo o céu clarear de repente, impunemente...” A luminosidade há de imperar, o céu vai clarear. Quer dizer, o amanhã, e tudo o que couber dentro dele, e quanto mais generoso melhor, é inexorável. Porém, precisa ser construído.
Esse horizonte mais largo para o amanhã alcança prioritariamente hoje uma questão mais dramática e imediata: poupar vidas, retomar padrões habituais de convivência. Estamos agora de olhos postos nesse amanhã. Sem esquecer que outros amanhãs vão existir. Depende de nós que sejam generosos ou não.
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