Ao contrário do que muitos pensam, quando se fala em miséria, não se trata apenas de pobreza e de falta de recursos. A miséria humana é muito mais abrangente e terrível: é a fome, é a doença, é a guerra, é a ignorância, é a intolerância, é a violência.
Semana passada, ficamos todos estarrecidos com a morte de um bebê aqui em Caxias do Sul: no colo do pai, provavelmente alvo de uma ordem de execução talvez equivocada, era para essa criança estar segura e protegida em seu lar. Morreu atingida por um tiro dos 20 que foram disparados contra a casa de sua família. A polícia ainda investiga o caso.
Também aqui em Caxias e poucos dias depois da morte do bebê, um menino de 9 anos foi encontrado com marcas de agressão e um ferimento a bala andando a esmo por uma estrada no interior idílico de Ana Rech na madrugada de quinta-feira. Próximo a ele, jazia o corpo de seu pai. Também ainda não há qualquer pista sobre esse crime.
Nesta última segunda-feira à noite, vários jovens estudantes que voltavam pela BR-116 de Caxias do Sul para São Marcos tiveram que dar meia-volta por causa de um tiroteio no pacato distrito de Pedras Brancas. Surreal. Esse é o tipo de coisa que se espera que aconteça na Linha Vermelha do Rio de Janeiro mas jamais numa estrada da Serra Gaúcha. Pensando bem, é muita ingenuidade minha achar que “jamais” poderia acontecer: uma das poucas certezas que se tem sobre o mundo é que a miséria humana se espalha, se alastra, se torna banal e deixa a sociedade entorpecida face à impotência diante do mal.
O caso dos quatro médicos assassinados em frente ao hotel do congresso de ortopedia no Rio de Janeiro é o tipo de coisa que muitos pensam que só pode acontecer naquela cidade dominada pelo crime organizado. Ledo engano: estamos cada vez mais próximos de sermos mero dano colateral de um confronto entre criminosos e polícia, ou entre facções rivais. Ao menos, como sociedade, ainda nos indignamos e ficamos chocados, exigimos respostas. Mas se não cobrarmos das autoridades ações que contenham tanta violência, tanto desrespeito pelos cidadãos, tanta perversidade, em breve o torpor vai tomar conta.
No momento em que ninguém mais se indignar, é porque a miséria humana nos reduziu a nada. Estaremos a um passo de viver em território conflagrado, tal qual a Faixa de Gaza. Hoje assistimos atônitos aos crimes bárbaros cometidos pelos terroristas do Hamas que deram início a mais uma guerra sangrenta no Oriente Médio, mas tudo isso parece ainda muito distante. Contudo, a brutalidade que domina as favelas do Rio de Janeiro na guerra do tráfico também parecia muito, muito distante. Não mais. Aquela violência toda já é praticada aqui na Serra, em menor escala, mas a semente ruim já foi plantada.
Vai ficar por assim mesmo? Vamos nos acostumar com esse tipo de noticiário? Espero sinceramente que não.