Muito se fala sobre vinhos naturais, autorais, livres ou de baixa ou mínima intervenção. Já que eles vêm sendo chamados de várias formas, há debates em câmaras setoriais para que eles tenham uma legislação em que possam ser enquadrados dentro de uma nova categoria, que seria chamada de vinhos diferenciados e incluiria os coloniais, artesanais e ancestrais. Para entender melhor as peculiaridades de cada tipo, especialistas e produtores são unânimes: é preciso buscar saber a origem, desde os vinhedos à elaboração.
Uma das pioneiras em vinhos que buscam a uva como protagonista, deixando os aditivos químicos de lado, é Lizete Vicari. Ela começou a produzir vinhos de fermentação espontânea com mínima intervenção e sem a utilização de insumos enológicos em 2007. Os primeiros foram feitos na garagem da residência na Praia do Rosa em Santa Catarina. Em 2016, se mudou para Monte Belo do Sul, cidade da Serra Gaúcha que vem se destacando como o principal polo de produtores destes tipos de vinhos no Brasil. Hoje, ela administra o Domínio Vicari junto com o filho enólogo, José Augusto Vicari Fasolo. O projeto que iniciou no Brasil foi parar também em Portugal. Além da adega que administram na Serra, eles cuidam de vinhedos em Maxial em Torres Vedras, cidade localizada a cerca de 40 quilômetros de Lisboa.
— Eu sempre falo que faço vinho livre, vinho autoral, vinho de autor. É um vinho em que a única coisa que se utiliza são as uvas, não utilizamos insumos. As leveduras são as da própria uva. São vinhos sem filtração, sem conservantes — explica Lizete.
Das quatro mil garrafas que produz por ano, cada uma tem características próprias. Além da produção menor, uma das marcas destes vinhos é justamente fugir ao padrão. O preferido de Lizete é o Lorena. Artista plástica de formação, ela elegeu pinturas de Alphonse Maria Mucha para ilustrar o rótulo com uma figura feminina segurando cachos de uva e com um olhar que traduz a proposta do vinho e da própria Lizete.
_ Escolhi essa imagem porque é a figura da Lorena, ela pode ser definida como uva de mesa, mas também tem características de uva fina, e ela pouco se importa com o que dizem dela. Ela é aromática, intensa, é a minha preferida _ descreve a autora do vinho.
"É preciso conhecer a procedência"
Enquanto Lizete apresentava este produto no evento Vinhos Da Natureza, promovido nesta semana no complexo gastronômico Tubuna, em Bento Gonçalves, um produtor ao lado apresentava outra Lorena. Era Eduardo Mendonça, também de Monte Belo do Sul, e que se considera pupilo de Lizete. Apesar de ser mais conhecido pelos espumantes, também produziu o seu vinho de Lorena, que ganhou o nome de Gauchona. O rótulo chamava a atenção dos consumidores e fazia mais sentido quando ele explicava a homenagem e, mais ainda, quando era degustado.
— Esta é uma uva criada pela Embrapa, portanto brasileira. E, como é muito cultivada no Rio Grande do Sul, ela é a nossa Gauchona — destaca.
Mendonça elabora seus vinhos desde 2016. Hoje produz cerca de 10 mil garrafas por ano. Cerca de um hectare do total plantado é dedicado exclusivamente para produção própria de suas bebidas. É que o morador de Monte Belo do Sul trabalha com parreiras há quase 20 anos. Sempre fornecia uvas para a indústria, mas não era nem consumidor de vinho.
— Não gostava. Acho que era porque eu só conhecia o da indústria. Foi quando eu provei o da Lizete que passei a gostar — relembra.
E passou também a buscar um manejo mais sustentável de suas videiras, além de elaborar os vinhos. Inclusive, atualmente, boa parte das uvas utilizadas nos vinhos do Domínio Vicari é proveniente da propriedade de Mendonça, já que Lizete vendeu as terras em Monte Belo do Sul para investir nos vinhedos em Portugal. Sobre a denominação de seus produtos, Mendonça prefere não rotular.
— Eu sempre falo para os meus clientes que é preciso conhecer a procedência do vinho para conhecer a baixa intervenção que se fala. Embora tenha muita polêmica, eu continuo usando o termo vinho natural. Não existe uma legislação para dizer que não é. Não entendo como na Europa eles dizem que o natural precisa ser orgânico e biodinâmico, mas aceitam uma quantidade pequena de sulfito — compara.
As uvas de Mendonça não têm agricultura orgânica e biodinâmica. Isso significa que são usados alguns tratamentos tradicionais, ainda mais em uma região de clima úmido como a Serra, sujeita a mais doenças fúngicas. No entanto, são eliminadas todas as intervenções possíveis, como uso de herbicidas. São respeitados períodos de carência e, a partir da formação do grão da uva, usada apenas a calda bordalesa, um fungicida permitido na agricultura orgânica. Na elaboração do vinho, Mendonça não utiliza nem mesmo o sulfito como conservante.
— O único sulfito que uso é para esterilizar materiais que vou usar — destaca.
Mendonça considera mais importante o produto final estar limpo de aditivos do que a uva em processo inicial, pois muita alteração vai ocorrer até a maturação dela. O resultado final, segundo o produtor, são vinhos "limpos, honestos e sem máscara" que vem sendo mais procurados por consumidores, não só em busca de novos aromas e sabores, mas também pensando na própria saúde.
Uma volta às origens
Observando a reação de pessoas que degustavam os vinhos de 12 produtores no evento Vinhos da Natureza em Bento Gonçalves nesta semana, muitas delas moradoras da Serra, era comum ver comparações do tipo: "o aroma é do vinho do meu nonno". E há uma explicação histórica para isso. A região que é a maior produtora de vinhos do país não é conhecida apelas pela produção em larga escala, mas também pela produção artesanal desde o início da colonização italiana, quando se passou a elaborar os vinhos, primeiro para o consumo próprio.
Feito para ser bebido logo, por isso em pouca quantidade, "o vinho do nonno" era elaborado sem conhecimentos técnicos de manejo da uva e, muito menos, enológicos. A observação do céu, com base no conhecimento popular, orientava o plantio e as colheitas. Sem insumos e tecnologias de elaboração, o vinho era feito de forma rudimentar com fermentações espontâneas. E. sem saber, estavam fazendo o que hoje convencionamos chamar de vinhos orgânicos e biodinâmicos.
Especialista em vinhos com forte atuação em entidades setoriais, Helio Marchioro acompanha discussões sobre a criação de uma legislação para regular estes vinhos que devem ser enquadrados em uma categoria em que serão chamados de diferenciados. Em câmaras setoriais na Câmara dos Deputados em Brasília e na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul se discutem os critérios para delimitar o que vai caracterizar cada tipo de vinho. No Estado já há regulamentação para o vinho colonial, mas ela não atende às necessidades de São Paulo, onde esse tipo de vinho também é produzido com outras peculiaridades. Por isso a necessidade desta unificação. No caso do vinho artesanal, já há algumas indicações, como exigir uma produção de no máximo 40 mil litros e vinificação com mínima intervenção. Nesta categoria entraria boa parte dos produtores que têm se afirmado como naturais e autorais. Para os vinhos com essas características, somadas ao cultivo orgânico e biodinâmico, o enquadramento sugerido é o de serem considerados ancestrais.
— Nada mais é do que o vinho que eu fazia com o meu pai — compara Marchioro.
O especialista também produz seus próprios vinhos com esta proposta que resgata às origens da Serra, mas que ao mesmo tempo as atualiza. A Vinícola Casa Ágora é um projeto familiar que nasceu oficialmente em 2014, com a conversão dos vinhedos para produção orgânica em Pinto Bandeira. São mais de cinco mil litros produzidos por ano oriundos de dois hectares de vinhedos próprios.
Além das variedades mais comuns de serem cultivadas na Serra, caso da Merlot, Marchioro trabalha com castas menos difundidas por aqui e que vêm se adaptando muito bem ao clima da região, como a portuguesa Alvarinho e outras históricas italianas como Sangiovese e Peverella, além de outras novidades que pretende implementar. Marchioro, inclusive, vai expor seus produtos na Feira Naturebas, que ocorre neste fim de semana em São Paulo, e que já vai para sua décima edição. É a primeira feira no Brasil especializada em vinhos naturais, orgânicos e biodinâmicos. Ele participa de vários encontros de vinhateiros na Serra, como o 1ª Encontro de Vinhos Autorais e Livres de Monte Belo do Sul que ocorre no dia 26 de junho com 14 produtores em frente ao Francesco Trattoria, inclusive com representantes de outras regiões do país.
Sem rótulos
Morgana Peruffo Forti começou a elaborar vinhos de baixa intervenção em 2020 na garagem da casa da família, em Bento Gonçalves. Nesta semana, foi a primeira vez que teve a oportunidade de expor os vinhos que já produziu, ao ser uma das convidadas do evento Vinhos da Natureza. Até então, os produtos circulavam mais entre os amigos.
A prova disso é que a sommelier precisou improvisar os rótulos para levá-los à feira. Um dia antes, imprimiu em casa os quadradinhos com espaço para preencher o nome das variedades à mão. Mas a etiqueta trazia também um recado curioso:
"Minha marca está em desenvolvimento, este rótulo é provisório, e isso não é mera coincidência".
Essa também é uma das características deste novo mercado que está em constante experimentação. A cada safra, Morgana tem feito produtos diferentes. Neste ano, utilizou os conhecimentos na fermentação da uva para produzir sua primeira sidra de maçã.
Assim como Morgana, outros produtores adotam esta mesma prática, com rótulos muitas vezes escritos à mão na própria garrafa, o que acaba colocando o líquido ainda mais em evidência.
A aventura de vinificar
Leonardo Haupt e Gabriela Suthoff se conheceram no Pico do Paraná, o mais alto da região Sul do Brasil. É por isso que a vinícola que criaram no Desvio Blauth, em Farroupilha, ganhou o nome de Montaneus, que remete ao homem que vive na montanha. Juntos decidiram se aventurar neste mundo dos vinhos, que não é tão novo assim para Haupt que é enólogo e tem experiência de mais de 30 anos em vinícolas como Chandon Brasil, Pizzato e Boscatto. Gabriela atuava na área de pedagogia.
— Fazíamos algumas experiências em casa e vimos que não era difícil vinificar por conta ainda mais tendo a técnica. Aí largamos nossos empregos para se dedicar a fazer um vinho natural, pensando no futuro, tanto dos nossos filhos como da humanidade. Encomendamos a uva, não tínhamos nem onde vinificar, mas a gente fez acontecer em plena pandemia. Os vinhos ficaram muitos bons e isso nos incentivou a continuar — lembra o enólogo.
E a Montaneus vai subir mais uns degraus nos próximos meses. Eles estão começando a trabalhar no cultivo da terra para a implementação de vinhedos orgânicos próprios.
— Serão uvas vitiviníferas europeias na Serra. Então é um desafio muito grande, mas a gente está estudando bastante, assessorados por profissionais que já têm muita experiência em cultivo orgânico e biodinâmico de videira. Estamos dando um passo por vez — destaca Gabriela.
O casal produz vinhos finos, mas neste ano decidiu vinificar também a Isabel por uma questão de vínculo afetivo.
— A Isabel é a uva que representa o vinho brasileiro e muitas pessoas tem uma história de infância, do vô, do tio, do pai que tomava. Buscamos uma uva orgânica e vinificamos em rosé com uma proposta de acidez mais alta, mais refinada, pensando em harmonizações — descreve a entusiasta.
Neste ano, a produção da vinícola foi de 5 mil garrafas com meta de chegar a 10 mil com a área de cultivo de um hectare e meio que está sendo preparada.