Escuta bem, o que passou, passou. Eu sei que é difícil deixar passar. Mas a esta altura já não é mais possível mudar algumas coisas. E coisas foram ditas em demasia. Coisas foram feitas às escondidas. Mas tudo veio à tona. Isso sempre acontece, não adianta achar que jamais será descoberto. Tudo, em qualquer momento, no tempo que for, será visto. E daí você perceberá o quanto está só. O quanto poderia ter pensado antes de fazer, como podia ter parado tudo e recomeçado. Nesta manhã de terça, enquanto o dia mal começa e ainda estás disponível, podes, se quiser, sentar e chorar. Talvez somente isto ainda te seja possível. Relembrar e chorar. Podias ter feito diferente? Talvez. Mas é preciso se dar conta e aceitar que a partir de agora nada mais será como antes. É impossível desver. É impossível esquecer. Quando algo se quebra, se quebra. Não é uma questão de idealização. Era amizade. Era amor. Era parceria. Era companheirismo. Era para ser diferente.
Mas agora algo se perdeu. Algo importante se perdeu nas chaves da casa que foram depositadas na caixa do correio. Algo se perdeu na cadeira vazia junto à mesa da cozinha. Algo se perdeu na lata de café nunca mais aberta dentro do armário. Algo se perdeu nas roupas doadas depois do enterro. Algo se perdeu nos livros fechados ao lado da cama. Algo se perdeu nas palavras que nunca mais foram digitadas.
É difícil entender porque se age do jeito que se age. Mas falta coragem de conversar, de tentar se explicar, de voltar e chamar para perto outra vez, de tentar elaborar. Seguimos, todos nós, uns mais outros menos, esquecidos dentro dos guarda-chuvas perdidos. As ruas, além dos inúmeros buracos e do asfalto de péssima qualidade, estão cheias de sorrisos jamais endereçados, de sonhos não compartilhados, de pedidos de desculpas nunca ditos. Ruas e pessoas esburacadas.
O que passou, passou. Seria bom se ficasse para trás, mas a dor e a decepção não é cronológica. Algumas atravessam os dias e os anos como se tivessem acontecido ontem. Fala-se daquilo que machuca como forma de percorrer o mesmo trajeto em busca do que se perdeu.
E no perdido do outro, a gente.
Estes caminhos que levam do presente ao passado nos depositam diante da porta de quem poderia ter feito diferente. E por ventura, seríamos nós mesmos? Quantas vezes você já se colocou diante da porta do outro e não teve coragem de bater? Quantas vezes já circulou por perto sem coragem de parar? Quantas vezes sentou na calçada a espera de um acaso? Quantas vezes sabia da tentativa do outro e não abriu a porta?
Vivemos vidas entre vazios e de vazios em vazios, uma vida cheia. É inverno, mas o sol aquece. Talvez seja a hora de parar de esperar. Quando algo se rompe, ambos partem. Uns vão para longe e mais rápido, outros ficam na espera daquilo que nem se sabe bem o que é. De todo modo, rompeu-se. Aos poucos a distância vai ficando cada vez maior e é preciso saber e lembrar disso, pois quando ela ficar vasta, nenhuma voz irá mais alcançar.