Escrevo para elaborar minhas perdas. É um jeito de me limpar e abrir espaço. Colocar para fora o que se quebra dentro para então poder olhar, colar, guardar ou até mesmo esquecer. Porque é preciso esquecer também. Mas cada um encontra a seu modo o livramento das dores.
Quando era pequena meu pai levava as mãos às minhas, como se fôssemos rezar, palma com palma e me dizia: ajuda o pai, come tudo que tem no prato, termina os estudos, nunca, nunca por nada deste mundo deixe de estudar, leia tudo o que eu nunca vou conseguir ler, aprende a escrever as coisas do mundo que nunca vou saber escrever, gasta teu dinheiro em livros e vai pra faculdade, depois, namore e case com alguém que tenha cheiro bom e te queira como tu é, reza por mim quando fores maior, para Deus ter piedade de mim e do meu corpo que tanto dói, porque a bondade pode não ser uma característica dele, lembra sempre de ser gentil com os animais, faz carinho neles, todo mundo tendo ou não ideia, gosta de um cafuné, não aperte demais os gatinhos recém-nascidos, já te vi fazer isso, eles não suportam o amor em excesso, não rouba os passarinhos dos ninhos, já te vi fazer isso também, eles são filhotes e carecem de mãe e pai como tu, celebra sempre a festa do teu aniversário, tu veio depois de muito esforço, levou quase dez anos pra chegar aqui, mesmo que um dia eu não possa mais celebrar contigo, celebra igual, compra uma torta, gosto de doce, sabes disso, come um pedaço por mim, aprende tudo que eu não vou aprender, porque chega uma hora em que a gente cansa de querer saber, toma conta da vida, das contas, das coisas, da casa, das plantas da tua mãe e um dia das tuas, não anda por ruas escuras, os homens são maus, anda sempre a olhar para os lados, presta atenção no chão em que pisa, foge das pessoas que tem magoam justificando a ternura, essas são as piores, aprenda a se arrepender, voltar atrás não é feio, é coisa de quem é gente de verdade, ria muito, sem medo do que as pessoas vão pensar do teu sorriso e riso, porque rir faz a vida ficar suportável e quando eu não mais estiver aqui, tenha certeza, vou ficar olhando por você mesmo que você não me possa ver.
Um pouco antes da sua partida, tomei-lhe da mesma forma as mãos, palma a palma e lhe disse, sim. Aprendi ali que o fim é um sim.
Escrever é um jeito de ficar. Ficar dito daquilo que se foi. Meu pai era meu primeiro e mais importante leitor e como jeito de lidar com as dores do fim, acabei compilando várias crônicas escritas aqui neste espaço ao longo dos anos que viraram um livro chamado Quando menos se espera já é março. Um modo de elaborar a perda compartilhando com quem me lê a beleza das palavras e afetos. As palavras sempre abrem espaço para novos começos. Afinal, depois de um sim, há vida. O livro é dedicado a ele. Penso que meu pai teria gostado muito de me ler.