Dias atrás reli o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa. Há solidão. A terceira margem pode ser o fundo do rio. Um rio cujas águas jamais conheceremos profundamente. A solidão do silêncio que há somente no fundo. E de quando em quando, feito o pai que constrói uma canoa e vai viver no meio do rio, precisamos mergulhar nesse escuro do fundo. É claro que jamais saberemos o que iremos encontrar. Não controlamos nada, muito menos o fluxo de nossa memória. A nossa cabeça pensa e registra cada coisa. Mas a escuridão começa pela superfície. Nada nunca é tão claro assim.
Penso naquele pai fazendo ausência. Naquele pai presente na ausência. Penso em nós, os outros. Os outros fora do conto, os leitores. Nós que, mesmo não lendo, continuamos a ser os outros. Os outros dentro das histórias dos outros. Por quantas pessoas já passamos na vida? Quantas já passaram por nós? Para quantas deixamos de existir ou ainda existimos num recorte de fotografia perdido no fundo da gaveta, num bilhete extraviado, numa memória quase apagada. Quantos ainda perambulam pela nossa existência, ocupando espaço quando deveriam já ter ido embora. Esse ir e ficar. Esse movimento aquoso das lembranças que nos carrega de uma margem à outra sem, às vezes, jamais no permitir navegar livremente. Uma memória é como uma âncora. Nos prende naquele exato momento. Por mais que os dias passem, que a vida pareça acontecer, desejamos nos movimentar, mas então há algo que nos prende a um fundo de rio. Rio de vida. Não é fácil admitirmos que mantemos amarras. Que apesar da possibilidade de ir, parte de nós quer ficar. Parte de nós não consegue ir.
A mãe no conto de Guimarães diz pro marido, cê vai, ocê fique, nunca volte. Leio esse trecho e penso quantas, quantas vezes já dissemos isso para alguém, como se disséssemos implicitamente ao outro que escolhe partir, veja bem, eu ainda mando nos meus sentimentos. Uma mentira que contamos a nós mesmos, pois achamos, na nossa ilusão de serzinhos donos de si, de que se nos retiramos antes, evitamos o sofrimento. Nunca. Sempre há de haver uma dor. Amar é andar permanentemente com os pés molhados. Não há sapato impermeável para a chuva da vida. A gente se molha sempre.
Se a cada banho de rio voltamos diferentes, tem gente que passa pela nossa vida e nos faz ser outro. O outro é o rio que nos molha. Em alguns nos afundamos, em outros mal mergulhamos, em outros ainda corremos o risco de nos afogar. Cada um sabe das funduras que carrega em si. Às vezes gostamos de quem nos transformamos. Às vezes nos damos conta de como o outro desperta em nós nosso lado mais sombrio. De todo modo, nunca saímos os mesmos.
Gosto de pensar que somos margeados pelas pessoas que temos perto. Se somos esse entremeio que é o rio, quem são as nossas margens? E como é importante que saibamos ir da margem ao meio e voltar. Temos medo de mergulhar no rio de nossos sentidos e memórias. Fugimos da experiência da solidão. Mas o rio é também corpo, corpo que acolhe, que convida a prender a respiração e abrir os olhos debaixo d’água. É lá embaixo que descobrimos quem podemos ser quando voltamos à tona.