E de repente uma coisa dentro de nós ganha corpo. Se remexe. Ocupa espaço. Assusta. Há dentro de todos nós um outro que às vezes acorda faminto. Sem tino ou juízo, sem paciência, meio criança, ainda embrutecido, sem educação. Uma raiva canta seu primeiro grito. O corpo acompanha a toada. Tensão. Então é preciso voltar a respirar. Abrir o punho já feito. Enjaular. Toda fera-humana carrega um assombro. Já temos feridas o suficiente para cuidar. Não há cultura ou história que dê conta das fraturas existentes em nosso corpo social. E no entanto, é preciso que tenhamos coragem de fechar as portas para as certezas, quase sempre incorretas. Descolonizar. Mas para isso, é preciso antes termos a humildade de juntar os pedaços de si e do nós. Fissurar a tensão. Atravessar medos. Apressar o passo. Tracionar a poesia. Voltar a acreditar. É preciso que a raiva se transforme em versos, que a voz de um grito vire canto e que juntos sonhemos um outro tempo possível.
Alguns desmoronamentos são incontroláveis. É verdade. De repente nos damos conta de que somos o que somos, e de que o outro é o que é. Mas é do sonho que nasce a força para remover os escombros. E embora nossas mãos sejam pequenas, a coletividade ganha um aceno. O tempo é uma casa, às vezes, como toda casa, bagunçada. Às vezes, como toda casa, um lugar difícil de habitar. Como toda casa-família, um espaço de angústia. O outro é sempre nosso pior reflexo. A tensão acorda nossos instintos e nos ronda, feito um animal que fareja com fome. Mas é preciso que possamos aprender a viver nesta casa-tempo, embora o desejo de ir embora esteja presente. Talvez um dia. Talvez um dia. Um dia com certeza não estaremos mais aqui. Por hora, é necessário que possamos reunir forças para suportar o vento forte que se anuncia. Toda vida é marcada por tempestades que colocam nossa alma à prova. Bem sei que há situações em que o silêncio é o último reduto dos que amam. Calar-se para suportar o desfecho. E há momentos em que a voz se cansa. Mas que seja um silêncio que paulatinamente ganhe consciência. Um silêncio que acorde o vozerio, a multidão, a memória e a fé. É no acorde do silêncio que tocamos a superfície do mundo. Essa película afetiva que tem a potência de deslocar as estruturas fixas e que querem se cristalizar.
Breve é a vida, essa obra eternamente inacabada. Breve são os dias. Que a raiva que nos habita não nos cause gastura, mas nos ensine a pensar. Que a tensão que remexe nossas tripas, essa inquilina inquieta e indesejada, nos ensine a ter lucidez. Que a inteligência aliada à maciez da ternura polinize nossos sonhos mais profundos. E que possamos acordar mais evoluídos, afinal, não podemos dizer que desejamos o amor, Deus e a beleza da vida, se o ódio ao outro é a fome que nos alimenta.