Agosto está quase terminando, meu bem. E lá se vai mais um mês, mais um punhado de dias que nunca mais se repetirão. Te escrevo porque escrever é uma forma de se rebelar contra o mutismo do fim. O fim de todos os dias, de cada minuto, de cada momento, sorriso ou lágrima. Quando alguém querido vai embora tudo ao redor perde a voz. Há um silêncio imposto pelo que se foi. E foi-se uma história, uma vida, um amor, um pai, uma mãe, um filho, um cachorro, um gato, um sonho, a juventude. Foi-se o tempo e com ele uma porção de palavras, afetos, memórias. Há um mutismo na história que se encerra. Fico pensando quantas vezes ao longo de uma vida inteira seremos calados pela força do fim de algo. Então te escrevo, porque escrever é uma forma de escutar tua voz muda. Sei também que só podemos escrever porque alguma brecha se abriu entre o caminho da tua ida e o meu momento estático.
Por outro lado, também suponho que escutar tua voz muda é escutar-me, é dizer-me na coisa toda que sinto e nem sempre compreendo. Na maioria das vezes somos pegos desprevenidos. De repente algo acontece e talha nosso dia como o leite é talhado para fazer ambrosia. Alguns deixam uma carta de despedida, outros avisam com antecedência. Outros apenas se vão. Ficamos nós, que não percebemos o prenúncio, embora ele sempre tenha dado sinais. Ou era uma doença ou as discussões intermináveis ou o fim de um tempo de trabalho. O fato é que vivemos o tempo todo o fim de algo, queiramos ou não.
Escutar esse silêncio que nos invade e faz poças de água, nos umedecendo por dentro é como pôr os ouvidos numa concha. É tentar ouvir o som de algo que se foi, mas ainda está aqui, ecoando. É dar espaço para a dor falar. Maria Gabriela Llansol, escritora portuguesa, nos diz que escrever é dar textura ao silêncio a nossa volta. Por isso, o texto passa a ser um grande paradoxo, pois está vivo, pulsa, chora, ri e diz das coisas que se perderam. É recuperar o corpo de origem e nele se (re)escrever, como os pássaros que migram todos os anos.
Escrever sobre a morte, sobre-viver o luto, proposta de minha oficina que acontece no próximo sábado, dia 3, é reencontrar-se conosco mesmos, com aquela pessoa que ficou parada no momento da partida da outra. Mas não somente falamos da morte em si, mas também da simbólica, da perda de um sonho, do fim de uma etapa de vida, de uma mudança imposta, e das escolhas que temos de fazer sem nunca saber se serão as corretas. A todo momento nos deparamos com paredes de um labirinto imaginário. Encontrar a saída de espaços claustrofóbicos pode gerar muita ansiedade. Por isso falar é tão difícil, mas escrever é deixar deslizar a dor para as palavras. É voltar a acreditar na potência mágica da memória. Pescar lembranças cujo poder colorem nosso dia. Talvez seja uma forma de sobre-viver à partida e permitir-se a possibilidade de um (re)nascimento, outra vez e outra vez e tantas vezes necessárias ao longo da jornada. Porque escrever os nossos mortos é sentir que estamos vivos e que eles permanecem vivos em nós enquanto pudermos falar deles. Mas numa outra dimensão.