Depois que fui atropelada e entrei para a estatística de acidentes de trânsito, decidi que iria aprender a dirigir. Um pouco por orgulho, um pouco por autosuperação, um pouco por raiva. Ser atropelada é humilhante, verdade seja dita. Esta era a sensação que me acompanhava na época. Que falta de competência para atravessar a rua. Eu e minha velha mania de assumir a culpa por tudo. Claro que busquei explicação psicológica para o fato, será que era a vida que estava me atropelando? Enquanto estava lá, estatelada no asfalto, ouvindo a sirene do Samu vindo me buscar, lembro que abri os olhos e vi o céu mais azul da minha vida. Era lindo e limpo e então pensei em Chico Buarque.
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Pois é, ao contrário do que a maioria das pessoas dizem, naqueles documentários que todo mundo já deve ter assistido pelo menos uma vez na vida, com depoimentos sobre os últimos pensamentos quando estavam perto da morte, eu, não lembrei de ninguém, só do Chico. Afinal, era eu caída no meio da rua atrapalhando o trânsito.
E o trânsito tem me ensinado muitas coisas ao longo desses anos. Quem me acompanha nas redes sociais sabe das minhas conquistas. A última foi que consegui finalmente subir o morro da Ernesto sem medo do carro apagar. Sim, eu já tinha tentado outras vezes, todas sem sucesso. Uma vez manobrei tanto para fazer o carro arrancar que fiquei atravessada no meio da rua. Imagina a situação periclitante da pessoa. É, dirigir ensina a perder a vergonha, a pedir ajuda, a superar os medos, a ter paciência, a não ligar para xingamentos, a confiar em estranhos.
É incrível como o trânsito pode ser tão paradoxo. Ao mesmo tempo que você precisa confiar na capacidade de inteligência e responsabilidade daquele ser que está dividindo a rua contigo, que ele terá discernimento para fazer uma ultrapassagem, vai ligar o pisca e será prudente, você precisa pensar que sim, ele pode ser um imbecil com titica de galinha na cabeça, pois não vai ligar o pisca coisa nenhuma e vai te cortar a frente numa curva, sabe-se lá por quê.
Acredito que estar na direção mostra muito de como somos. Há os pacientes e os impacientes, os simpáticos e os mal-educados, os gentis e os egoístas e isso se aplica para todos que usam a rua, sejam motoristas, pedestres e ciclistas. Claro que nem todo mundo é assim, ainda bem. Por via das dúvidas, toda vez que saio de casa, respiro com o diafragma, rezo com o terço que minha nona me deu e que fica no espelho retrovisor, e sempre, sempre tento ser uma pessoa melhor. Ah, e antes que alguém pergunte, eu fui atropelada na faixa de segurança e o sinal ainda estava aberto para mim.