Lá da onde eu vim, da minha terra da infância, o mundo tem cheiro de chuva. A melhor parte do dia era quando depois de muito correr, banho tomado e barriga cheia, ver a chuva chegar. E a chuva era um convite para entrar na casa dos sonhos. Quando a gente é criança tem tantos sonhos. Eu sonhava em amar alguém que amasse poesia. Sonhava que poderia ser bióloga, veterinária, fisioterapeuta, botânica. Sonhava em conhecer a lua. Sonhava com o cheiro do pão feito pela vizinha toda sexta-feira. Ela, por anos a fio, nos presenteava com alimento e aroma, nutrindo mais que o corpo, os sonhos. Depois, na adolescência, sonhava com um mundo mais justo, pessoas mais honestas, sistemas menos corruptos.
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Nessa época o cheiro que mais sentia era o da tinta do jornal que imprimíamos na escola. Tudo tinha cheiro de futuro. Mas, o futuro já me havia chegado, muito antes, chegara com a gibeira. Tinha seis anos quando me deparei com um livro perdido pela casa. Nunca havia juntado letras antes. Fiquei não sei quanto tempo decifrando letra por letra, formando palavras até que me deparei com gibeira. Era perto da hora do jantar. Saí debaixo da mesa, meu lugar e espaço no mundo, a procura de algum adulto que pudesse me introduzir no universo da palavra desconhecida. Foi quando meu pai se deu conta de que eu havia conseguido ler pela primeira vez. E minha primeira leitura tinha cheiro de carne de panela com polenta. Anos depois descobri que as palavras me alcançaram pela música.
Romaria é a minha estréia no mundo das letras. Ouvi Elis Regina essa semana, tocando no rádio, enquanto tentava não sentir o cheiro da poluição do trânsito, e pensando que a infância é uma espécie de terra de gigantes. Tudo é tão enorme, a casa, as pessoas, o jardim, os anos, os cheiros, os sonhos. De vez em quando é preciso visitá-la, lembrar de quem queríamos ser, das nossas conquistas, medos, amigos, para compreender o quanto mudamos ou quanto ainda continuamos infantis. Não sei que cheiro as palavras têm, acho que depende do momento. Algumas são doces, outras azedas. Algumas chegam cheias de sabor, outras amargas. Talvez essa relação sensorial com elas tenha me levado para o jornalismo e a literatura, profissões nunca sonhadas na infância.
Depois da gibeira percebi que poderia ler qualquer coisa e quanto mais enfio o nariz dentro dos livros, mais percebo que a vida é infinitamente maior. Aliás, a vida hoje tem cheiro de presença. Só descobrimos que realmente crescemos, quando aprendemos a lidar com nosso próprio desamparo. Eu sei, ninguém lembrou de nos avisar, que crescer traz medo, mas que sem ele, não há mundo.