Em seu apartamento, no centro de Passo Fundo, a professora Tânia Rösing, símbolo da cultura no Estado, coleciona memórias e a história daquele que chegou a ser o maior evento literário do Brasil: a Jornada Nacional de Literatura. Durante 36 anos, os encontros no norte do Rio Grande do Sul estiveram entre as maiores movimentações literárias da América Latina.
A Jornada de Literatura reuniu, por mais de três décadas, os principais autores brasileiros, artistas, cantores, poetas, críticos de cinema e diversas figuras importantes da cena cultural do país. A professora lamenta o fim do evento, que afirma ser "inexplicável", por uma decisão justificada pela organização: a falta de verbas.
Este é o primeiro, de uma série de perfis de personalidades da região, que GZH Passo Fundo irá publicar, semanalmente.
Nascimento considerado um milagre
Tânia Mariza Kuchenbecker Rosing, nasceu em Passo Fundo em 16 de outubro de 1947, filha mais nova de quatro irmãos. O pai era alfaiate. Seu nascimento foi considerado um verdadeiro milagre, pois dois anos antes a mãe havia sido acometida por uma doença e proibida de engravidar pelo médico, inclusive achando que morreria de forma precoce.
— Há 77 anos, minha mãe ficou doente e foi tratada por vários médicos que constataram um problema no fígado. Como não havia mais recursos aqui em Passo Fundo, ela foi a Porto Alegre. O médico detectou tuberculose renal e ela precisava ser operada. Passou pelo procedimento e sobreviveu, mas foi aconselhada a não engravidar. Só que, dois anos depois, ela engravidou. O doutor pediu que interrompesse a gravidez, mas ela não aceitou a sugestão. Eu nasci saudável e minha mãe viveu até os 91 anos de idade — conta.
Tânia é de família metodista. Seu pai, Luís Gustavo Kuchenbecker, veio de Brusque, Santa Catarina (SC), embalado pela crença de que havia panelas de ouro enterradas no norte do Estado. Nunca encontrou ouro. Aprendeu o ofício de alfaiate e se dedicou à profissão.
— A única joia que meu pai encontrou foi a minha mãe, com que ele foi casado desde 1925.
A menina que frequentou os bancos escolares do Instituto Educacional Metodista, aos 11 anos descobriu que não enxergava de um olho, problema que não teve tratamento e que persiste até hoje.
— Desde muito pequena, meu pai dizia que quando Deus concede a vida a cada uma das pessoas, elas têm de fazer uma coisa especial para agradecer esta dádiva. Ele dizia: "Você tem uma dívida grande com Deus, porque nasceu e sobreviveu".
Tânia atribui a esse conselho do pai toda a sua dedicação no colégio como professora e depois na Universidade de Passo Fundo (UPF), por meio das jornadas:
— Foi uma forma de agradecer a Deus indiretamente, para dizer que ganhei essa vida e procurei honrá-la.
A professora foi criada dentro da Igreja Metodista e foi lá que conheceu o futuro companheiro de vida, Acioly Rosing, com quem foi casada por 56 anos. Acioly faleceu no dia 25 da janeiro deste ano. Do casamento nasceram Cassiano e Ilana.
Aos 75 anos Tânia Rösing coleciona memórias de seu casamento e mostra com orgulho cada pedaço de uma trajetória marcada pela dedicação aos estudos e por muito trabalho. A família sempre permaneceu ligada à literatura e às artes e seus três netos, Lavinia Kuchenbecker Rosing de Oliveira, 19 anos, Vítor Kuchenbecker Rosing de Oliveira, 14 anos Anna Catharina Georg Rosing, 8 anos, mantém o gosto pela leitura.
No apartamento, fotografias que são verdadeiras relíquias, quadros e até tapetes tecidos pelo pai decoram as paredes.
O anel que marcou seu casamento
Foi com um anel de ouro e uma pedra turmalina azul que Acioly pediu Tânia em casamento no dia 1º de janeiro de 1966. O noivado foi oficializado em 16 de outubro do mesmo ano e o casamento aconteceu em 7 de janeiro de 1967, com uma grande festa no Internato do colégio IE.
Quando completaram 50 anos de casados, um livro foi editado com a imagem do anel que deu início a um amor que duraria uma vida inteira. No livro, a história das famílias Kuchenbecker e Rosing, fotografias, poesias, textos narram o encontro, os filhos, os netos e o amor pela literatura e pelas artes.
— Temos uma linda história de vida. Trabalhamos muito, os três turnos, uma vida inteira. Eu lecionava manhã e noite no IE e fazia faculdade de letras. Acioly se dedicou a área de ciências econômicas. Trabalhava no IE manhã e noite e na secretaria municipal de Agricultura. Depois passou no concurso para fiscal da Fazenda Estadual. Ele nunca dizia que era fiscal, dizia que era professor. Tivemos sempre esse orgulho de sermos professores.
Quando a professora optou pelo mestrado, os filhos estavam maiores, com 12 e 10 anos. O doutorado ficou para mais tarde, quando a filha foi estudar em Porto Alegre.
— Eu sempre busquei conciliar a vida de mãe com os estudos. Tudo isso foi porque eu e meu esposo sempre fomos embalados pela vontade de fazer a UPF crescer e ser reconhecida em uma área que ninguém acreditava. Quisemos fazer nossa cidade ser reconhecida pelo encontro de escritores a partir da Universidade.
Tânia foi professora da Universidade de Passo Fundo, de 1971 até 2017 coordenou o curso de letras e, unindo iniciativa, perspicácia e influências na cena cultural brasileira, capitaneou a Jornada Nacional de Literatura e a Jornadinha Nacional de Literatura.
Sua casa exala a paixão pelas Jornadas em todos os cantos. Traços que transformaram Passo Fundo no berço da cultura nacional por praticamente quatro décadas.
Fotografias, caricaturas, canecas, uma coleção de livros autografados, uma pasta com os autógrafos de grandes autores marcam a emoção da professora, que dedicou meio século à literatura e à cultura.
Tânia coordenou o evento até 2013. A última edição presencial da 16ª Jornada Nacional de Literatura e 8ª Jornadinha Nacional de Literatura, foi em outubro de 2017, com participação de dois mil adultos e cerca de vinte mil crianças.
Em 2021 uma versão virtual, devido à pandemia, marcou os 40 anos das jornadas. Edição, que segundo Tânia, não seguiu o modelo tradicional de convidar, indicar as obras, ler antes de dialogar com o autor.
Como a Jornada começou
A sempre coordenadora das jornadas conta com emoção do dia em que conversou informalmente com o escritor Josué Guimarães, seu aliado na concretização desse sonho.
Foi em de abril de 1981, há 42 anos, que ela fez a proposta para Josué Guimarães para que pudessem trazer escritores a Passo Fundo para conversar com os leitores. A condição seria de que antes as pessoas leriam as obras dos autores que estariam presentes.
— Não tínhamos um relacionamento com os escritores de Porto Alegre. Josué então se comprometeu em convidar os amigos e conseguiu as confirmações. Fui fazer o convite presencialmente a cada um. Foi uma grande emoção falar com o Márcio Quintana para convidá-lo. Vieram nove escritores, foi um sucesso.
Entre os escritores, Mário Quintana, Armindo Trevisan, Moacyr Scliar, Carlos Nejar, Sérgio Caparelli, Ciro Martins.
— Sempre achei irresponsável trazer um artista, cantor, escritor, fazer uma conferência, e as pessoas não terem noção do que era — revelou.
Ela conta que foi feita uma pré jornada no Colégio Estadual Protásio Alves e ali estiveram reunidos, mais de 250 professores de diferentes áreas.
— Estudamos as obras, alunos da Faculdade de Letras fizeram crônicas que foram publicadas nos jornais locais sobre os autores que viriam. Dois dias antes as pessoas procuraram a inscrição e já estávamos em 750 pessoas no auditório onde hoje é a Faculdade de Medicina. Josué deu um tom de alegria ao evento e a cada dia vinha mais gente interessada em participar.
A professora contou uma situação hilária que aconteceu durante uma das sessões de autógrafos na primeira edição do evento.
— As pessoas estavam emocionadas e não havia estrutura. Na sessão de autógrafos meu marido pegou Mário Quintana no colo e o colocou dentro do espaço do bar para que ele pudesse se acomodar e onde permaneceu por três horas autografando seus livros e conversando com os leitores. Eram filas intermináveis. O autógrafo é o autor sentindo a grandeza de sua obra, o reconhecimento.
A mesa que testemunhou o planejamento
Enquanto não havia uma grande estrutura, as refeições dos convidados eram feitas na sua casa. A mesa de jantar, a mesma que permanece até hoje, testemunhou os planos das Jornadas e muitos encontros com grandes autores brasileiros.
— No almoço fazíamos comida gauchesca e à noite jantares, tudo muito informal. Eram autores e a equipe conversando livremente.
A 1ª edição da chamada Jornada de Literatura Sul-Riograndense terminou e Tânia sentiu a sensação de dever cumprido. Mal sabia ela que esse era apenas o início de uma história que duraria décadas.
— Quando terminou fui falar com o Josué e ele disse que a próxima edição estava pronta, que seria nacional e aconteceria a cada dois anos. Eu o questionei: mas quem é o louco que vai vir à Passo Fundo? Ele disse: ‘os meus amigos’. Assim nascia a jornada Nacional de Literatura.
Na segunda edição, a presença de grandes autores como Millor Fernandes, Fernando Sabino, Luiz Fernando Veríssimo, Lia Luft, Luis Antônio de Assis Brasil, o jornalista José Onofre, entre outros, demonstrava que a força de um evento que vinha para ficar.
— Foi algo tão grandioso, vendo no palco Millor conversando como se estivesse no sofá de casa, é inexplicável. Foi um sucesso. Quem imaginaria que Passo Fundo, uma cidade longínqua, no interior gaúcho, pudesse bancar um evento de tamanha grandeza, que valorizava o escritor, lendo as obras, trazendo o escritor na posição de superstar, quando nunca tinham sido considerados assim. Até que um dia todo o escritor queria vir para a jornada.
Na mesma mesa de jantar que a 1ª Jornadinha Nacional de Literatura foi planejada para que tivesse a mesma grandiosidade com os adultos. E teve. As crianças lotavam o circo da cultura ano após ano.
Projetos paralelos se uniram à Jornada
Tânia conta que aos poucos outros eventos quiseram se unir. Um deles foi o Projeto Encontro Marcado da IBM Brasil, pela primeira vez em uma cidade do interior brasileiro.
— Eles trouxeram o escritor mais feio do Brasil, Ferreira Goulart, depois o Fernando Gabeira, o amazonense Thiago de Mello, o mineiro Osvaldo França Junior, entre tantas outras figuras. O Projeto apresentava um vídeo de abertura sobre a vida e obra e depois o escritor falava ao vivo com a plateia. Essas parcerias foram validando a Jornada como uma referência.
A professora disse que muitos autores chegavam a Passo Fundo e se perguntavam o porquê estar em um lugar pequeno e distante, que não parecia ter condições de abrigar grandes eventos.
— Num dia chuvoso, em que a cidade parecia um deserto, o ginásio do Clube Juvenil estava lotado e as pessoas enlouquecidas esperando os autores. Foi assim que eles entendiam que aqui nascia um grande movimento literário que inspirou outros tantos no Brasil e na América Latina.
Jornadinhas
A estreia das jornadinhas foi em 2011 com o tema: uma Jornada na Galáxia de Gutenberg – Da Prensa ao E-Book. Por meio de contato com o Consulado alemão Tânia conseguiu o empréstimo da prensa de Gutenberg, umas das três existentes no mundo. Ela ficou em exposição no Museu de Artes Visuais Ruth Schneider, ao lado de um e-book, contrastando a tecnologia com a antiguidade.
Foram sete edições do evento dedicado ao público infantil e infanto-juvenil.
Da edição inicial às demais o público foi ampliado, separando o ensino fundamental séries inicias, séries finais, ensino médio, universidade e a Jornight, dedicado aos alunos de EJA – Educação de Jovens e Adultos.
— Vimos alunos pobres, sem acesso à cultura, chegando com sua melhor roupa, emocionados para assistir uma apresentação cultural e ver de perto os autores. Não consigo entender como a universidade acabou com tudo isso. Tiraram o privilégio de diferentes níveis sociais.
Jornadas atraíram a elite cultural brasileira
O que se conseguiu com as jornadas foi atrair a elite cultural brasileira, alguns nomes latino-americanos como Eduardo Galeado e Pablo Neruda, que chegavam a Passo Fundo por pura curiosidade.
— Não fossem as jornadas as pessoas não teriam essa oportunidade.
Um pouco de loucura e muito de coragem
Uma das características marcantes de Tânia Rösing era o ímpeto e a teimosia, o que fez com que trouxesse até o interior do Rio Grande do Sul grandes figuras como Chico Buarque. Em 2005, na 11ª edição do evento, o compositor foi o vencedor do 4º Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura, com o romance Budapeste.
— Demorei para conseguir contato com ele. Insisti por dias e numa tarde meu telefone tocou. Era ele. Expliquei que foi o ganhador do prêmio de 150 mil e que gostaríamos que ele viesse recebê-lo. Me coloquei à disposição para conseguir um jatinho que fosse buscá-lo e despois levá-lo, na mesma noite. Aquela noite. Só que não tinha nenhum jatinho (rs).
A professora então começou uma peregrinação por empresas locais buscando um patrocínio. Em uma delas disseram que o custo seria de R$ 50 mil.
— O Chico Buarque estava pronto para vir a Passo Fundo e eu fui atrás de quem financiasse isso. Consegui com as donas da empresa de coletivo urbano Coleurb. Apelei para todos os santos e expliquei que muitos professores jamais teriam a oportunidade de ir em um show como esse. Elas aceitaram e finalmente eu tinha conseguido um patrocínio integral.
Anedotários trazem depoimentos de fatos pitorescos vividos pelos autores
Das histórias cômicas vividas pelos autores surgiram três ‘Anedotários’, livros com as histórias paralelas que nunca foram contadas. Mas não são só de fatos engraçados que se vive. Em alguns trechos Tânia Rösing conta as dificuldades, a luta em conseguir convencer algumas figuras a viajar para Passo Fundo. Ariano Suassuna foi um deles. Ele vivia em Recife e achava difícil viajar até para o Rio de Janeiro. Convencê-lo a viajar para o interior gaúcho, no mês de agosto, num inverno rigoroso, era um feito quase impossível. Mas ela conseguiu. O escritor passou pela Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo em 2005. Foi um grande sucesso.
— Ariano Suassuna teve que ficar sozinho em um andar inteiro do Hotel San Silvestre porque as pessoas queriam entrar para pedir autógrafos. Elas estavam enlouquecidas.
Elisa Lucinda e o sapato do namorado
Uma das histórias contadas na 1ª edição do Anedotário foi a da atriz, poetisa, escritora e cantora Elisa Lucinda. Depois de fazer muitas exigências como pagamentos antecipados e a certeza da compra de passagem para o dia posterior à sua participação, ela acabou se apaixonando pelo evento e pediu a transferência da passagem por duas vezes, permanecendo na cidade por toda a semana, até o dia do encerramento da 8ª edição, quando fez uma performance ao lado de Mário Pirata. Foram aplaudidos em pé.
— Na manhã seguinte ela deveria pegar o primeiro ônibus às 6h30. Não apareceu. O segundo ônibus sairia às 8h30. Ela chegou as 8h15 toda descabelada, cheia de malas e pacotes. Estávamos todos cansados, com tarefas, desmontar toda a infraestrutura, fazer pagamentos. Às 13h recebo uma ligação de Elisa dizendo que esqueceu um sapato que havia comprado para o namorado. Enlouqueci e pensei: vai pro quinto dos infernos, compre um novo presente. (trecho do Anedotário – 1).
— Foram muitos momentos de muita emoção literária e pessoal, alguns incomodaram, mas isso também faz parte.
Durante 36 anos as Jornadas Literárias de Passo Fundo estiveram entre as maiores movimentações literárias da América Latina.
Integravam o evento, o Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura, Literatura e Linguagens, Feira do Livro, conferências, workshops, shows musicais e espetáculos teatrais.
As Jornadas Literárias renderam à Passo Fundo o título de Capital Nacional da Literatura, reconhecida pela lei nº 11.264/2006, e de Capital Estadual de Literatura, pela lei nº 12.838/2007.