Para os estudantes da Escola Municipal Milton Alvez de Souza, de Sarandi, no norte gaúcho, estudar sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia se tornou algo maior do que cumprir o currículo escolar: desde o ano passado, 21 estudantes do 8º ano estabeleceram contato com refugiados da Ucrânia na Polônia através de cartas.
A iniciativa integra o projeto "Cartas da Paz", desenvolvido pela professora Fernanda Pinto, que leciona história e geografia. A ideia surgiu depois de estudar o livro Cartas a Povos Distantes (Paulinas, 2015), do autor pernambucano Fábio Monteiro. Na obra, o escritor finalista do Prêmio Jabuti em 2016 retrata a história do menino Giramundo, que passa a conversar com um garoto que vive em Angola, na África, através de cartas.
Para estabelecer o contato, a turma contou com o apoio da consultora de tecnologia Fernanda Quadros, que vive na Polônia. Ela encontrou o Centrum Kreatywnosci Talent, instituição que se adaptou para receber os estudantes refugiados da Ucrânia depois de 24 de fevereiro de 2022, quando tropas russas invadiram o território vizinho e forçaram a saída de centenas de milhares ucranianos.
Inicialmente, as correspondências foram abertas e avaliadas pelos poloneses para que não chegasse qualquer tipo de conteúdo ofensivo ou prejudicial aos refugiados. Mas, vendo que se tratava de um projeto interessado na abordagem pacífica do conflito, os textos dos estudantes brasileiros foram bem recebidos pelos adolescentes ucranianos.
— Depois do sinal positivo, eu decidi elaborar toda uma apresentação para fazer no dia da visita (à instituição), explicar sobre o projeto. Aí pude ver e sentir o quão importante foi receber esse apoio dos brasileiros nesse momento tão difícil — relatou Fernanda Quadros.
Ao longo de 2023, 13 adolescentes refugiados responderam às cartas dos brasileiros em três línguas: ucraniano, inglês e polonês. E, desde que as respostas chegaram ao Brasil, o contato se fortaleceu e virou frequente entre os alunos gaúchos e ucranianos.
"Nos imaginamos vivendo o que eles viveram"
A aluna do 8º ano, Isabela Fochezatto, 15 anos, experimentou um choque de realidade através das cartas. Em Sarandi, município de 22,8 mil habitantes do norte gaúcho, leu sobre o caminho dos refugiados até a cidade polonesa de Breslávia, de cerca de 640 mil moradores.
— Quando recebemos as cartas, mexeu um pouco com o nosso psicológico porque eles têm a nossa idade e viveram muita coisa. Então a gente se imaginou vivendo o que eles estão vivendo — conta.
Do outro lado do papel está Inna Perxyhkoba, uma das adolescentes que precisou deixar a Ucrânia. Ela conta que perdeu uma irmã durante os ataques russos e, agora, vive com os pais em uma cidade da Noruega. Apesar da dificuldade em falar sobre o assunto, Inna relata gratidão em receber o apoio através das cartas.
— Eu vivia com medo e sabia que isso não era bom para mim. Não sei se vou voltar (para a Ucrânia). Estou muito agradecida aos brasileiros. Eles me amam muito e o que fizeram é muito bom (referindo-se às cartas) — disse, com ajuda de um tradutor.
Com as cartas, os estudantes de Sarandi fizeram o exercício de se colocar no lugar dos refugiados e tentar compreender o que viveram no processo de sair do país. Para muitos casos, as jornadas levavam dias e eram permeadas pelo medo de novos ataques.
— Recriar a vida novamente num outro país que com certeza é diferente de onde eles viviam não deve ser fácil. Então acho que o principal é o sentimento de empatia que tivemos que criar algo mais forte em cima disso — disse o estudante Igor Merlin, 15 anos, morador de Sarandi.
História virou livro
A partir das cartas, uma nova fase do projeto tomou forma: com ajuda da professora Fernanda, os alunos gaúchos passaram a escrever sobre os detalhes da saga. Nos textos, compartilharam os momentos vividos, desde o contato com os estrangeiros até uma visita a um evento onde estava o autor Fábio Monteiro, do livro Cartas a Povos Distantes, que inspirou o projeto.
O livro foi lançado em 15 de março de 2024 e está disponível em plataformas digitais. Ao todo, são 102 páginas com história sobre o contato feito com os ucranianos, além de fotos das cartas que foram enviadas e recebidas pelos estudantes escritores.
— Fazer com que um aluno saiba essas diferenças e consiga conversar com pessoas que estão vivenciando a guerra é um crescimento que eu acredito que os torne cidadãos melhores. A ideia é que eles se tornem pessoas que vão interagir com outras sempre pensando: "como você está vivendo, qual a tua realidade?" — enfatizou a professora.
— Ninguém esperava que a sementinha que plantamos ia se transformar em uma árvore tão grandiosa e cheia de frutos — completou Isabela.