Por Ricardo Giuliani, doutor em direito e artista plástico
Atribuem a J.J.Gomes Canotilho a frase “quem só sabe direito, nem mesmo direito sabe”; preciso, certo, atordoante!
O mestre português, o pai da constituição dirigente, advogava por vida pulsante no mundo dos juristas; transformamo-nos numa classe de pessoas que falamos para nós mesmos; vamos despreocupados com o outro, conversamos com ninguém, degustamos o sabor do senso comum.
Tão carentes andamos de vida que é justo clamar por existências nestes dias tão dilacerados pela ausência das gentes nas discussões sobre o nosso futuro como humanidade e civilização.
Nada haverá de justo ou correto se não o for em função do outro e da admissão das diferenças que nos fazem plurais, divergentes, sociais
Não há democracia, pois, sem o outro. A democracia é o máximo reconhecimento jurídico e a afirmação da vida do outro em sociedade. Nada haverá de justo ou correto se não o for em função do outro e da admissão das diferenças que nos fazem plurais, divergentes, sociais. A vida real, com pretensões de ser jurídica, expressa desejos e ações concretas no sentido da eliminação do outro; algo intolerável num sistema jurídico-político que tem exatamente no outro sua razão de existência num tempo, disse Castoriadis, que é construção histórico-social. A democracia não tolera a intolerância consigo.
Num mundo de extremas polarizações e de convicções que se cristalizam a estampidos de espumante ou ao som de armas matando pobres e negros, pouca coisa nos resta. Como querer que o mundo normativo, o que dita as nossas possibilidades de convivência, se estabilize diante de pedaços de sociedade que negam a existência do outro? Como vencer os formulismos autocongratulantes nascidos de mentes banalizadas que se satisfazem com likes? Como fazer para que o direito volte a ser expressão social de vida pulsante, longe das crenças e dos rituais jurídico-pagãos? Como, pois, retomar o cógito e libertar-se das telinhas?
Quem se apresenta como sabedor do direito sem vida, sem preocupações com o outro, não passará de um ser instagramável, volátil, volúvel, pronto para mais incivilização, distante da função que já foi socialmente relevante.