Mesmo atrasada e comedida demais para a gravidade da situação, a nota divulgada na terça-feira pelo Itamaraty com críticas ao processo eleitoral da Venezuela traz a expectativa de que o Brasil possa ao menos estar começando a reconhecer a farsa encenada pelo ditador Nicolás Maduro. Ainda é cedo, no entanto, para ter a segurança de que o governo Luiz Inácio Lula da Silva rendeu-se ao fato de que o país vizinho não é uma democracia há bastante tempo e o autocrata no poder há 11 anos organiza uma eleição de fachada para se manter no Palácio de Miraflores. Infelizmente, não é demasiada a hipótese de Lula ter apenas feito um movimento pontual para aplacar as contrariedades da opinião pública brasileira à complacência do petista com o regime venezuelano.
Aguarda-se que a nota do Itamaraty marque o fim da relativização da autocracia venezuelana
A mais nova artimanha de Maduro foi o inexplicável impedimento de a oposicionista Corina Yoris registrar a sua candidatura à presidência no sistema de inscrição da autoridade nacional eleitoral por não conseguir acessar a plataforma. Corina, filósofa e professora universitária, é apoiada pela ex-deputada María Corina Machado para ser o principal nome a desafiar Maduro na eleição de julho. María, deve-se lembrar, foi inabilitada a concorrer para cargos públicos por 15 anos após vencer as primárias da oposição por maioria esmagadora no final do ano passado. A alegação é de que teria cometido “irregularidades administrativas” quando era parlamentar.
A manobra grotesca desta semana, apenas mais uma para impedir a realização de uma eleição minimamente competitiva, fez o Itamaraty publicar uma declaração dizendo que “o governo brasileiro acompanha com expectativa e preocupação o desenrolar do processo eleitoral naquele país” e observar que Corina Yoris foi barrada de registrar-se sem qualquer explicação oficial. Mesmo sem qualquer exagero retórico, a nota mereceu uma resposta deselegante da Venezuela, mas compatível com a habitual truculência do regime chavista. O ministro de Relações Exteriores, Yván Gil, chegou a indicar que a declaração brasileira parecia ter sido ditada pelo Departamento de Estado dos EUA.
Em outubro do ano passado, o chamado Acordo de Barbados, firmado entre o governo venezuelano e a oposição, com mediação internacional, parecia ser um sopro de esperança para a Venezuela ter eleições livres neste ano. Em troca, o país teria alívio em sanções comerciais. Tudo não passou de mero jogo de cena. Em seguida, o regime prosseguiu as perseguições e prisões de oposicionistas e não arrefeceu na ofensiva para evitar que os principais oposicionistas concorressem.
O Brasil fará uma correção de rumo acertada se continuar cobrando a Venezuela e criticando arbítrios, até que exista uma verdadeira abertura no país lindeiro. Lula e o PT, por vínculos ideológicos, têm dificuldades para reconhecer a ditadura de Maduro e a captura das instituições, o que impede pleitos justos e uma vida democrática em patamares mínimos na Venezuela. O resultado é a miséria do povo e violações constantes dos direitos humanos, já denunciadas pela maior parte da esquerda sul-americana. A realidade se impõe e o governo brasileiro tem de reconhecê-la. Aguarda-se que a nota do Itamaraty marque o fim da relativização da autocracia venezuelana.