Edson Luiz André de Sousa (*)
Eles estavam no pátio de uma creche em Blumenau, entre as cores vivas dos balanços, dos escorregadores e das gangorras. A vida ensaiando os equilíbrios, os primeiros movimentos de vertigem, as descobertas do mundo através do brincar. Experimentavam o prazer da infância em suas invenções e futuros, sonhavam olhando para as nuvens e para horizontes azuis do céu. A vida em sua plenitude e paz em uma manhã de início de outono.
Fico imaginando quais terão sido as últimas palavras dos Bernardos, um de quatro e outro de cinco anos, do Enzo, quatro anos, e da Larissa, sete anos. Vidas interrompidas brutalmente por um assassino insano que desferiu golpes com uma machadinha ferindo ainda outras cinco crianças e deixando o Brasil inteiro sob o efeito deste trauma.
Morremos todos um pouco na manhã de 5 de abril, pois não há vida possível quando cenas como a de Blumenau vão se tornando moeda corrente em nosso país. Temos chegado tarde demais nestas tragédias e precisamos urgentemente agir, pois não há esperança na barbárie. Cenas traumáticas como estas nos paralisam e muitas vezes nos silenciam, mas é preciso encontrar as palavras que ainda não existem para tentar cercar este inominável do horror. O silêncio e o esquecimento, sabemos bem, têm sido na história da humanidade cúmplices de muitas atrocidades. Lembrei-me do livro de poemas do escritor polonês Jerzy Ficowski, A Leitura das Cinzas. Ele escreve sobre a Shoah e tenta buscar palavras para reagir, pois é preciso colocar linguagem lá onde ela está ausente. Um dos poemas de Ficowski me fez pensar nas quatro crianças assassinadas da creche Cantinho Bom Pastor. Ele intitulou Sete Palavras e começa assim: "Mamãe! Eu fui bonzinho! Está escuro! Escuro!".
Estas foram as últimas palavras de uma criança em uma câmera de gás em Belzec em 1942 segundo o depoimento de um sobrevivente. Blumenau ficou escura, o Brasil ficou asfixiado, envolto em um discurso de ódio que tem contaminado corações e mentes, sobretudo nos últimos anos.
Estudo recente de pesquisadores da Unicamp contabilizou 11 ataques em um ano. Pesquisando o perfil dos criminosos, ficou claro que muitas destas ações se alimentam de um culto à destruição, já que se sentem identificados com ideias racistas, misóginas, homofóbicas, nazistas e fascistas. Ainda não sabemos mais detalhes das motivações do crime de Blumenau, mas é evidente certo efeito de contaminação na proliferação destas tragédias. Há duas semanas, um garoto de 13 anos matou a professora a facadas e feriu outros professores e colegas na Escola Thomázia Montoro, em São Paulo. Em novembro do ano passado, em Aracruz, no Espirito Santo, um rapaz de 16 anos atacou a tiros duas escolas, resultando em três mortos e 11 feridos. Na investigação, foi encontrada propaganda nazista em sua casa. Ainda recentemente, tivemos outros episódios em Sobral, no Ceará, em Barreiras, na Bahia, em Saudades, em Santa Catarina, quando outra creche foi atacada, com as mortes de três crianças com menos de dois anos e duas professoras.
Como foi possível chegarmos a tal grau de miséria, de barbárie, de crueldade? Sabemos que algumas comunidades na deep web insuflam estes crimes em uma espécie de gameficação macabra da vida, o bem mais precioso que temos. Uma das medidas que já foram anunciadas pelo governo federal no dia mesmo do crime foi a ampliação do número de policiais para monitoramento destas redes. A imprensa também tem tomado cuidado em como noticiar este fatos, não divulgando imagens dos criminosos e as cenas dos crimes, como forma de conter este empuxo à espetacularização destes horrores.
Precisamos urgentemente implementar uma cultura de desarmamento em nosso país, de paz, de solidariedade, de empatia, de respeito às diferenças. Não há respiração possível dentro destes vapores do ódio.
Precisamos urgentemente implementar uma cultura de desarmamento em nosso país, de paz, de solidariedade, de empatia, de respeito às diferenças. Não há respiração possível dentro destes vapores do ódio. Perdemos quatro pequenas pérolas, e esta ferida ficará aberta ainda por muito tempo. Não podemos esquecer estes nomes: Bernardo Cunha, Bernardo Machado, Enzo Barbosa e Larissa Toldo. Milhões de outras crianças devem estar pensando neles e algumas talvez até tendo pesadelos. Como vamos recuperar nosso direito a sonhar e a viver com esperança e segurança? A infância talvez seja a imagem mais contundente das utopias, das promessas de um novo mundo. É hora de acionar nossa indignação diante destes horrores e neste ponto me junto à reação do Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, ao comentar sobre este crime: "Eu não me conformo com isso e não quero viver em um mundo assim". Vamos precisar inventar outro.
Como escreveu Emil Cioran, "uma sociedade sem utopias está condenada à esclerose e à ruína". Temos todos um compromisso de cuidar da memória neste Brasil que tende a apagar os rastros de sua história com muita facilidade. Fiquei especialmente emocionado ao ouvir o depoimento do Bruno Bridi, que perdeu seu filho Bernardo, quando disse: "A partir de hoje, a memória dele vai ser honrada dentro do meu coração". Cuidar da memória como um dos atos solidários mais importantes.
(*) Psicanalista, autor do livro "Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia" (Artes & Ecos, 2022)