Por Fabio Brun Goldschmidt, advogado tributarista
Quando fui conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), participei de uma insurreição inédita lá dentro. Minha turma julgava o caso da Petrobras, e a votação havia empatado relativamente à multa. O presidente, então, proferiu voto de qualidade (leia-se, votou duas vezes) para, com isso, desempatar o julgamento e declarar vitória em favor do Fisco.
Na oportunidade, sustentamos a inaplicabilidade do voto de qualidade, gerando enorme perplexidade dos presentes. Defendemos que, em matéria de multa, o empate não se resolveria em favor do Fisco, mas do contribuinte, pois o empate equivale à dúvida e, em matéria de infração tributária, a dúvida se resolve em favor do acusado.
Apesar da rejeição do argumento pelo presidente, o episódio gerou diversas matérias de jornais e ações judiciais pedindo a anulação de julgamentos decididos de forma semelhante. O barulho deu lugar à edição da Lei nº 13.988/2020, que extinguiu o odioso instituto.
Em janeiro, fomos surpreendidos pela edição de medida provisória que reinstituiu o voto de qualidade
Um voto que se computa duas vezes não é voto “de qualidade”, mas “de quantidade”. Ele quebra a paridade do julgamento em favor de uma das partes, o Poder Executivo, que é quem acusa, processa, decide e ganha (mesmo quando empata). O fim do voto de qualidade, assim, restabelece o devido processo legal e a ampla defesa. Sendo obrigação do Fisco garantir a certeza de seu crédito, nada mais natural que, havendo dúvidas sobre sua higidez, elas sejam resolvidas em favor da parte mais fraca.
Em janeiro, fomos surpreendidos pela edição de medida provisória que reinstituiu o voto de qualidade. E, por ironia, fomos chamados a propor ação direta no STF questionando a constitucionalidade da norma. Segundo entendemos, a tentativa do Executivo de revogar ato do Legislativo, mediante o uso de MP fora das hipóteses constitucionalmente previstas, ofende a separação de poderes, notadamente quando o expediente é usado para contornar, por vias tortas, a vontade expressamente manifestada pelos representantes do povo.
Nossa Constituição não contém nenhum preceito que estabeleça a prevalência dos interesses do Fisco sobre os do contribuinte. Antes pelo contrário: ela prevê um elenco fechado de poderes do Fisco e um rol aberto de garantias do contribuinte. O sistema está estruturado para a proteção dele e, obviamente, isso não pode ser invertido por MP. Qualidade se faz com Justiça tributária.