A minuta de um decreto planejado para anular as eleições presidenciais e quebrar o sigilo de ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), encontrada na residência do ex-ministro Anderson Torres, compromete o guardião do documento ilegal, que está preso desde sábado, e exige manifestação do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, agora investigado no inquérito que apura os atos antidemocráticos do último dia 8. A medida de exceção, mascarada sob a rubrica de estado de defesa, previa a criação de uma comissão de regularidade eleitoral, controlada pelo governo para fazer a “apuração da conformidade e legalidade” do processo eleitoral, entre outros eufemismos criados com a intenção de suavizar o arbítrio.
Não há negacionismo capaz de encobrir as cenas escabrosas que o país e o mundo presenciaram no último dia 8
Embora habilmente redigida para dar formato jurídico a teorias da conspiração amplamente difundidas nos quatro anos do governo anterior, a proposta – na opinião de diversos juristas ouvidos pela imprensa – era flagrantemente inconstitucional. Alguns especialistas argumentam que o documento formaliza ato preparatório de um crime contra a segurança nacional, já que seu propósito seria abolir o regime democrático. Trata-se de um delito previsto no artigo 359-L do código penal e punido com pena de reclusão entre quatro e oito anos.
Na interpretação de vários juristas, a minuta apreendida pela Polícia Federal poderá ser utilizada como justificativa para uma ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, com potencial para torná-lo inelegível. Não por coincidência, os redatores do malfadado texto propõem levar à prática punições para suspeitas infundadas amplamente difundidas pelo presidente e por seus apoiadores, da fraude nas urnas eletrônicas à parcialidade do tribunal eleitoral. Mentiras repetidas exaustivamente – e desmascaradas pela imprensa profissional e por instituições republicanas – foram adaptadas à linguagem técnica da comunicação oficial para justificar o golpe.
Embora o documento encontrado no armário do ex-ministro não contenha assinatura de ninguém, são visíveis as impressões digitais do núcleo golpista que chancelava as posições do seu líder. O presidente Jair Bolsonaro insiste em dizer que sempre atuou dentro das quatro linhas do jogo, fazendo uma analogia entre as regras do futebol e a legalidade republicana. Mas dificilmente alguém vai acreditar que uma proposta desse teor tenha ido parar no armário do seu ministro da Justiça sem que ele tivesse conhecimento.
Mesmo que estivesse na pilha de papéis para descarte, como argumenta o ex-servidor preso, a minuta do golpe suscita questionamentos que precisam ser respondidos. Quem, então, encaminhou-lhe o documento? Quem, além dele, tomou conhecimento de sua existência? Por que estava guardado no armário de sua casa?
Ainda que o ex-ministro tenha respostas satisfatórias e comprováveis para essas indagações, dificilmente deixará de ser responsabilizado pela prevaricação que facilitou a invasão dos prédios dos três poderes da República – negligência até mais grave do que a conspiração documentada. A minuta sem assinatura até pode ser negada, mas não há negacionismo capaz de encobrir as cenas escabrosas que o país e o mundo presenciaram no último dia 8.